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Oriente

Mandarins

Escrito por Super User | Publicado: Quarta, 20 de Setembro de 2017, 19h51 | Última atualização em Terça, 22 de Dezembro de 2020, 19h12

Ofício do Senado da Câmara da cidade de Macau para o Ministério da Marinha e Ultramar, relatando a morte de um português pelos mandarins, as dificuldades financeiras sofridas naquele ano pela cidade e os casos de humilhações sofridas pelos portugueses. Apesar do texto iniciar esclarecendo o respeito e acatamento às “reais ordens”, o ofício explicitamente critica a condução do governo da metrópole perante a colônia, pois os habitantes portugueses não mantêm a ordem e a autoridade necessárias para o controle colonial. Da morte do português pelos mandarins ao problema de embriaguez e furto do próprio exército luso, o ofício demonstra os intrincados percalços do processo de dominação colonial.

Conjunto documental: Secretaria de Estado do Ministério do Reino
Notação: caixa 664, pct. 1
Datas-limite: 1783-1817
Título do fundo ou coleção: Negócios de Portugal
Código do fundo: 59
Argumento de pesquisa: Pequim
Data do documento: 28 de dezembro de 1793
Local: Macau
Folha(s): pacotilha n. 1, 46

 

Temos a vista a sempre respeitável carta de Vossa Ex.ª de 27 de janeiro deste ano, e nela muitas considerações de V. Ex.ª: sobre as circunstâncias da morte do manila Pedro Ronquilho, que foi justiçado nesta cidade pelos mandarins[1] no ano de 1791, e sendo elas próprias do superior juízo de V. Ex.ª ; excedendo à nossa compreensão, é preciso não sairmos dos limites do respeito, e acatamento, com que sempre recebemos, e desejamos executar as reais ordens. [...]

[...] e que sendo a sua majestade[2] [...] outras muitas lesões da sua real jurisdição nesta cidade como a infração dos privilégios dela, as dificuldades do comércio, o aumento dos direitos das mercadorias[3] e até o do mesmo foro do chão[4] que habitamos, e outras muitas vexações que temos experimentado dos mandarins em diversas ocasiões e até reconsiderar na Sua Real Presença a necessidade, que havia de ter em Pequim quem as representasse ao Imperador, até agora se não dignou a mesma senhora dar esta tão importante como conhecida providência [...].
Contando tudo isto na Real Presença talvez não constará sendo uma das providências lembradas por V. Ex.ª em benefício desta colônia[5] extinguir-se a antiga tropa, que a guarnecia, e virem de Goa cento e cinquenta homens escolhidos. Foi ela tão mal executada que apenas se acharam vinte ou trinta que deixem de ser bêbados, ou ladrões tão miseráveis e desprezíveis, que não inculcam respeito aos chinas, cujas boticas[6] frequentam para embriagar-se, alguns têm chegado a largar as armas em vazar e outros têm sido pilhados bêbados [...] com tudo isso despenda este Senado com eles doze mil taes[7] em cada ano além do fardamento e despesa do hospital.

 

[1] Casta de conselheiros e funcionários letrados que administravam o Estado e aconselhavam os imperadores chineses a partir do século III d.C., aproximadamente. Selecionados por meio de rigorosos exames abertos a qualquer um na sociedade, formavam burocratas civis e militares estáveis, de grande prestígio, que deveriam ter comportamento exemplar e caso transgredissem perderiam seus cargos e teriam que pagar pesadas multas. A introdução dos mandarins acrescentou uma nova elite intelectual de funcionários públicos, uma nova aristocracia, a dos altos funcionários responsáveis pela administração do Império. Os mandarins dividiam-se em um sistema de 9 níveis, todos selecionados por mérito e não por pertencimento à nobreza. Entre os civis incluíam o secretário do imperador, ministros, governadores de províncias, chanceleres, superintendentes de finanças, juízes, magistrados, entre outros, em todos os níveis de governação, desde a local a mais geral. Entre os militares, variavam de sargentos a marechais. O termo mandarim vem dos primeiros contatos entre chineses e portugueses no século XV-XVI, deriva do malaio mantori e este do sânscrito mantri, ambos querendo dizer ministros ou conselheiros. Os exames para mandarim só foram extintos no início do século XX e o sistema foi adotado também pelos vietnamitas, até meados dos novecentos.

[2] Maria da Glória Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana, rainha de Portugal, sucedeu a seu pai, d. José I, no trono português em 1777. O reinado mariano, época chamada de Viradeira, foi marcado pela destituição e exílio do marquês de Pombal, muito embora se tenha dado continuidade à política regalista e laicizante da governação anterior. Externamente, foi assinalado pelos conflitos com os espanhóis nas terras americanas, resultando na perda da ilha de Santa Catarina e da colônia do Sacramento, e pela assinatura dos Tratados de Santo Ildefonso (1777) e do Pardo (1778), encerrando esta querela na América, ao ceder a região dos Sete Povos das Missões para a Espanha em troca da devolução de Santa Catarina e do Rio Grande. Este período caracterizou-se por uma maior abertura de Portugal à Ilustração, quando foi criada a Academia Real das Ciências de Lisboa, e por um incentivo ao pragmatismo inspirado nas ideias fisiocráticas — o uso das ciências para adiantamento da agricultura e da indústria de Portugal. Essa nova postura representou, ainda, um refluxo nas atividades manufatureiras no Brasil, para desenvolvimento das mesmas em Portugal, e um maior controle no comércio colonial, pelo incentivo da produção agrícola na colônia. Deste modo, o reinado de d. Maria I, ao tentar promover uma modernização do Estado, impeliu o início da crise do Antigo Sistema Colonial, e não por acaso, foi durante este período que a Conjuração Mineira (1789) ocorreu, e foi sufocada, evidenciando a necessidade de uma mudança de atitude frente a colônia. Diante do agravamento dos problemas mentais da rainha e de sua consequente impossibilidade de reger o Império português, d. João tornou-se príncipe regente de Portugal e seus domínios em 1792, obtendo o título de d. João VI com a morte da sua mãe no Brasil em 1816, quando termina oficialmente o reinado mariano.

[3] Referem-se ao direito fiscal aduaneiro. Trata-se das leis referentes à importação e exportação de mercadorias, e igualmente a uma série de atividades a elas relacionadas, como fiscalização, carga, descarga, armazenagem, transporte etc. Antes da carta de 28 de janeiro de 1808, que determinava a abertura dos portos do Brasil às nações amigas de Portugal, os direitos não figuravam na pauta de discussões da colônia, limitada a seu comércio exclusivo oficial com a metrópole – salvo algumas exceções e o contínuo contrabando. Em virtude da transferência da sede do governo português para o Rio de Janeiro, os portos brasileiros, abertos, passam a ser frequentados por outras nações estrangeiras, e não somente por Portugal. Essa ação impôs a instituição de novos percentuais a serem pagos nas alfândegas do Brasil e uma nova ordem de valores que favorecia os produtos ingleses. Isto aconteceu devido ao acordo estabelecido com a Grã-Bretanha, que havia escoltado a esquadra portuguesa até as Américas em troca de abertura comercial com o Brasil, visando a aliviar o escoamento de sua produção, limitado pelo bloqueio continental imposto por Napoleão à Europa. A carta de 28 de janeiro institui o percentual de 24% a ser cobrado sobre os produtos estrangeiros e de 16% sobre os produtos portugueses. O decreto seguinte, de 11 de junho do mesmo ano, diminui em 8% os impostos sobre os produtos de Portugal e dá 5% de abatimento para os produtos estrangeiros transportados em navios portugueses. O tratado de comércio e navegação com a Inglaterra, de 1810, reduziu para 15% a tarifa alfandegária sobre produtos ingleses — favorecendo este país em relação a outros e até mesmo a Portugal, que pagava valores mais altos. Em fevereiro de 1811, para favorecer o comércio com as possessões portuguesas na África e, sobretudo, na Ásia, uma nova lei determinava que as mercadorias vindas destes continentes, especialmente de Goa, Diu e Damão, pagariam metade dos direitos de entrada (16%) quando transportadas em navios portugueses — protegendo principalmente a produção têxtil dos territórios portugueses nas “Índias”, tornando-as competitiva com as fazendas inglesas. Próximo ao final do período joanino no Brasil, sobretudo depois da coroação acontecida no Rio de Janeiro em 1818 e o não-retorno da Corte, portugueses cobraram e protestaram contra a situação de inferioridade em que se encontrava a metrópole. No que foram atendidos com uma nova lei, que reduziu mais a cobrança da entrada de produtos portugueses e aumentou os entraves dos produtos estrangeiros, visando a melhorar o comércio português e diminuir o domínio inglês nos postos do Brasil.

[4] Espécie de pensão ou renda tributada daquele que usufrui o domínio útil de uma propriedade. O estabelecimento dos portugueses em Macau – colônia lusa na China – a partir de meados do século XVI ficou sujeito ao pagamento de uma renda anual às autoridades mandarins conhecida como Foro do chão. Apenas em 1846, Portugal deixaria de pagar tal tributo, durante o governo de Ferreira do Amaral, quando o governo de Macau passou a não mais depender de Goa.

[5] Entre os séculos XVI e XVIII, o colonialismo destacava-se entre as práticas mercantilistas adotadas pelos estados nacionais europeus, ou seja, a fundação de colônias nos territórios recém-descobertos durante as grandes navegações dos séculos XV e XVI. O interesse por ouro e prata, secundado por outros objetivos como a evangelização e a administração política das novas terras, levou à criação de colônias nesses territórios. A colônia existiria em função e para a metrópole extrair ao máximo suas riquezas e servir como mercado consumidor para as mercadorias metropolitanas, estando suas relações definidas através do pacto colonial ou exclusivo colonial. Caberia à colônia gerar elevados lucros aos comerciantes metropolitanos, detentores do monopólio de importação e exportação nessas áreas de influência. Vender a preços elevados e comprar pelo menor valor garantiria uma balança comercial favorável à metrópole. No entanto, havia uma disparidade significativa entre algumas colônias. Grande parte dessa distância era explicada pelo diferente nível de liberdade econômica de que cada uma desfrutava, dividindo-se, principalmente, em colônias de exploração e colônias de povoamento. As primeiras referem-se às regiões que, embora povoadas, tinham por objetivo principal a exploração dos recursos naturais considerados preciosos para os colonizadores. Este foi o caso das colônias portuguesas e espanholas, que tinham no exclusivo metropolitano um instrumento necessário para manter o sentido da colonização, segundo o qual a colônia ficava com o encargo de produzir matérias primas para a metrópole, enquanto esta lhe vendia produtos com maior valor agregado. Já as colônias de povoamento, embora também tenham sido exploradas, tinham como finalidade o estabelecimento de núcleos de povoamento. Neste caso, encontramos como exemplo as Treze Colônias norte-americanas, cujo impulso se deveu a problemas de ordem social e religiosa na Inglaterra para os quais a América surgira como solução.

[6] A palavra botica origina-se do grego apotheke, cujo significado etimológico é depósito, armazém. A botica (ou apoteca) surge com o aparecimento de um estabelecimento fixo para venda de medicamentos. Na Idade Média, foram famosas as boticas dos cônegos regrantes de Santo Agostinho, as dos Dominicanos e as dos padres da Companhia de Jesus. No Brasil, os padres jesuítas instalaram boticas na Bahia, Olinda, Recife, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo. Merecem também destaque as boticas de Goa e Macau administradas pela Companhia de Jesus. A botica do colégio jesuíta de Salvador teve uma importância especial por se tornar um centro distribuidor para as demais, tanto na Bahia como em outras províncias. A botica do Rio de Janeiro, além de abastecer as boticas laicas da cidade, enviava medicamentos para as boticas jesuíticas das aldeias, fazendas e outros colégios. De acordo com padre Serafim Leite, as boticas dos colégios jesuítas disponibilizavam seus produtos gratuitamente ao público, salvo para aqueles com melhores condições financeiras e que podiam comprar. Os recursos oriundos dessas vendas só poderiam ser aplicados na própria botica, na aquisição de medicamentos, matérias primas, equipamentos e livros. Além das boticas dos colégios jesuíticos, havia aquelas instaladas nas fazendas e aldeias que se caracterizavam como um espaço para armazenamento, não se produzindo remédios nesses locais. Eram igualmente muito conceituadas as boticas dos hospitais militares. No Império, foi criada a botica do Hospital da Marinha da Província da Bahia que funcionou no Arsenal da Marinha. Além de manipular e fornecer os medicamentos para os enfermos, a botica provia também os navios da Armada da Estação Naval e os que ali aportassem. Vale destacar a botica como um espaço privilegiado no início da implantação do que viria a ser o curso de medicina na Bahia. O ensino médico no Brasil teve início na extinta enfermaria-botica do Colégio de Jesus e a botica de Santa Tereza abrigou a cadeira de farmácia. A botica foi o ambiente onde se praticou a ciência e a arte do medicamento, juntando num mesmo local pesquisa e conhecimento. Paralelamente, a botica constituiu também um importante espaço de comércio.

[7] Unidade de peso, que tem valor monetário na China.

 

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