Ir direto para menu de acessibilidade.
Início do conteúdo da página
Companhia de Jesus

Liberdade dos gentios

Escrito por Super User | Publicado: Quinta, 25 de Janeiro de 2018, 16h45 | Última atualização em Terça, 17 de Agosto de 2021, 20h49

Carta do rei Filipe II para dom Diogo de Menezes Serqueira, governador geral do Estado do Brasil, sobre a lei da liberdade dos gentios da terra para a manutenção da segurança e do comércio com os moradores das capitanias do Brasil. Através desta correspondência, o rei solicita a ação dos religiosos da Companhia de Jesus para que, através do crédito e confiança que mantém junto a essa população, mantenham-na pacífica. O rei ressalta ainda a obrigação destes religiosos na formação espiritual dos gentios na doutrina cristã.  Sobretudo, o documento revela a preocupação de Filipe II em manter a paz em suas possessões durante o período da União Ibérica.

Conjunto documental: Registro de provisões, alvarás, leis, títulos, forais e regimentos da Relação do Brasil.
Notação: Códice 541
Datas-limite: 1613-1691
Título do fundo ou coleção: Relação da Bahia
Código de fundo: 83
Argumento de pesquisa: Companhia de Jesus
Data do documento: 31 de Agosto de 1609
Local: Lisboa
Folha(s): 52 a 54

 

Dom Felipe[1] e companhia faço saber a vós Dom Diogo de Menezes Serqueira, do meu Conselho, e Governador Geral do Estado do Brasil, que eu passei hora uma minha lei por mim assinada, e passada, e nela publicada, da qual lei o treslado é o seguinte: (...) mandei fazer esta lei, pela qual declaro todos os gentios[2] daquelas partes do Brasil por livres, conforme a direito, e seu nascimento natural, assim os que já foram batizados, e seduzidos a nossa Santa Fé Católica, como os que ainda servirem como gentios, conforme os seus rituais, e cerimonias, as quais todos serão tratados, e havidos por pessoas livres, como são, e não serão constrangidos a serviço, nem a coisa alguma contra sua livre vontade, e as pessoas que deles se servirem nas suas fazendas lhes pagarão seu trabalho, assim, e da maneira, que são obrigados a pagar a todas as mais pessoas livres de que se servem; e pelo muito que convém a conservação dos ditos gentios, e poderem com liberdade, e segurança, morar, e comerciar com os moradores das Capitanias, e para o mais que convier a meu serviço e benefício das Fazendas de todo aquele estado, e cessem de todos os enganos, e violências, com que os capitães, e moradores os traziam do Sertão, e pelo que convém ao serviço de Deus, e meu, e por outros justos respeitos, que a isso movem; Hei por bem que os religiosos da Companhia de Jesus[3], que hora estão nas ditas partes, ou ao diante a elas forem, possam ir ao Sertão, pelo muito conhecimento, e exercício que desta maneira tem, e pelo crédito, e confiança, que os gentios deles fazem, para os domesticarem e segurarem em sua liberdade, e os encaminharem no que convém ao mesmo gentio, assim nas coisas de sua Salvação, como na vivenda comum, e comércio com os moradores daquelas partes: Hei por bem que os ditos gentios sejam senhores de suas fazendas nas povoações em que morarem, como o são na Serra, se lhe poderem ser tomadas, nem sobre elas de lhe fazer moléstia, nem injustiça alguma; e o Governador[4] com parecer dos ditos religiosos aos que vierem da serra assinalada lugares para neles lavrarem, e cultivarem, não sendo já aproveitados pelos capitães dentro no tempo, como por suas doações são obrigados, e das Capitanias, e lugares, que lhe forem ordenados, não puderem ser mudados para outros contra sua vontade; (salvo quando eles livremente o quiserem fazer). Hei por bem, que nas ditas povoações em que estiverem, onde não houver Ouvidor5 dos Capitães, o Governador lhe ordene um Juiz Particular, que seja português, cristão, o qual conhecerá das causas, que o gentio tiver com os moradores, ou os moradores com eles, e terá de alçada no civil até dez cruzados, e no crime até trinta dias de prisão, porque se o merecer em tal caso, correrá o livramento, pelas Justiças Ordinárias, e assim ordenará uma pessoa de confiança, Cristão Velho[5], para que com ordem dos ditos religiosos possa responder o que for devido aos gentios; e na execução do que liquidamente se lhe dever de seu serviço se procederá  sumariamente, conforme a minhas ordenações, aos quais se fará o favor que a Justiça permitir. (...). Dada na Cidade de Lisboa[6] ao derradeiro dia de Agosto. El Rei Nosso Senhor o mandou pelo Doutor Damião d´Aguiar[7], do seu Conselho[8], e Chanceler mór de seus Reinos e Senhorios. Ano de Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1609. Eu, Gaspar Maldonado a fiz escrever // O Chanceler Mór // Concentada // Pedro Castanho // Damião d´Aguiar.

 

[1]FILIPE II (1578-1621): segundo rei espanhol da dinastia Habsburgo, também conhecida como filipina. Filipe II, chamado “o Pio”, governou Portugal entre os anos de 1598 e 1621, durante o período da junção das duas Coroas, conhecido como União Ibérica (1580-1640). Sob o seu reinado, os portugueses tiveram de contar praticamente consigo próprios na defesa de suas possessões ultramarinas diante das incursões francesas, holandesas e inglesas. Como consequência do descaso do rei espanhol, as colônias portuguesas tiveram sua importância comercial abalada. Merecem destaque na administração de Filipe II: as Ordenações Fili (1603) – compilação jurídica resultante da revisão do código manuelino (1521) que, sem trazer muitas inovações, consolidou as leis já em vigor, respeitando as tradições e identidade portuguesas e vigorou no Brasil até 1916, com o advento do Código Civil; a criação do Conselho das Í (1604) – responsável pela centralização da administração do império ultramar português, nesse momento inserido nos vastos domínios filipinos; e o estabelecimento da paz com a Inglaterra (1604) e com as Províncias Unidas (1609).

[2]GENTIO: a designação foi empregada, ao longo da história da conquista da colônia, para se referir ao índio não cristão, àquele que não havido sido integrado na órbita colonial luso-brasileira. Gentio é um termo usualmente relacionado a “bárbaros”, “selvagens”, “bravos”, “gentio”, ou ainda “tapuia” sem muita distinção, contribuindo para a construção de um recurso jurídico visando a decretação de guerra justa, escravização dos índios e liberação de terras para os colonos. Em carta a Mem de Sá, em 1558, o rei recomenda que os colonos apoiem os jesuítas na tarefa mais importante da política real do Brasil, quer dizer, na conversão dos pagãos “porque o principal e primeiro intento que tenho em todas as partes da minha conquista é o aumento e conservação da nossa santa fé e conversão dos gentios delas”. Em Apontamento de coisas do Brasil (1558), Nóbrega se refere ao gentio como “de qualidade que não se quer por bem, senão por temor e sujeição, como se tem experimentado e por isso se S.A. os quer ver todos convertidos mande-os sujeitar e deve fazer estender os cristãos pela terra adentro e reparti-lhes o serviço dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhorear, como se faz em outras partes de terras novas, e não sei como se sofre, a geração portuguesa que entre todas as nações é a mais temida e obedecida, estar por toda esta costa sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste gentio do mundo.” (Ribeiro, D. e Moreira Neto, C.A. A fundação do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1992: 121)

[3]JESUÍTAS: ordem religiosa fundada em 1540 por Inácio de Loyola e marcada por severa disciplina, profunda devoção religiosa e intensa lealdade à Igreja e à Ordem. Criada para combater principalmente o protestantismo, sua fundação respondeu à necessidade de renovação das ordens regulares surgida das determinações do Concílio de Trento (1545-1563). A instalação da Companhia de Jesus em Portugal e nos seus domínios ultramarinos deu-se ainda no século XVI. O primeiro grupo de missionários jesuítas chegou ao Brasil em 1549, na comitiva de Tomé de Souza. Seus membros eram conhecidos como ‘soldados de Cristo’, dadas as suas características missionárias. Responsáveis pela catequese, coube também, aos jesuítas, a transmissão da cultura portuguesa nas possessões americanas por meio do ensino, que monopolizaram até meados do século XVIII. Fundaram, por todo território colonial, missões religiosas e aldeamentos indígenas de caráter civilizador e evangelizador. Em fins do século XVII, o modelo missionário já estava bem consolidado, difundido por quase toda a América, e os jesuítas acumulando grande poder. Os primeiros jesuítas a chegar ao Maranhão, em 1615, foram os padres Manuel Gomes e Diogo Nunes, detentores de uma posição privilegiada na região, tanto na evangelização e defesa dos índios, quanto no monopólio do comércio e armazenamento das drogas. São de religiosos da Companhia de Jesus relatos sobre os primeiros séculos da colonização. O padre italiano João Antonio Andreoni (André João Antonil) publicou em 1711 Cultura e opulência no Brasil. História da Companhia de Jesus no Brasil escrito por Serafim Leite, os dois volumes de Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1722-1776) do padre João Daniel, Tratados da terra e gentes do Brasil de Fernão Cardim e os numerosos sermões e cartas da Antonio Vieira são testemunhos importantes e reveladores do Brasil colonial. Os jesuítas também foram os responsáveis por espalhar a língua dos Tupinambá, chamada língua geral (nheengatu), largamente falada no Brasil até meados do século XVIII. O grande poderio e influência dos jesuítas na América portuguesa foram contestados durante a administração pombalina (1750-1777), gerando um conflito de interesses entre a Companhia de Jesus e o governo, que culminou com a expulsão dos membros dessa ordem religiosa em 1759. Cabe ressaltar que a decisão de expulsar os jesuítas de Portugal e de seus domínios, tomada pelo marquês de Pombal, não buscava reduzir o papel da Igreja, mas derivava da intenção de secularizar a educação, dentro dos moldes ilustrados.

[4] GOVERNO-GERAL: criado em 1548 em substituição ao sistema de capitanias hereditárias, tinha como finalidade a centralização administrativa e a organização da colônia, bem como auxiliar e proteger todas as capitanias. O primeiro governador-geral foi Tomé de Souza (1549-1553). A cidade de Salvador foi escolhida como sede do governo-geral, por localizar-se em um ponto médio do litoral, o que facilitaria a comunicação com as demais regiões da colônia. Junto ao governador-geral, indicado pelo rei de Portugal, outros cargos foram criados: ouvidor-mor (assuntos judiciais), provedor-mor (questões financeiras), alcaide-mor (funções de organização, administração e defesa militar) e capitão-mor (questões jurídicas e de defesa). Em 1572, o rei de Portugal dividiu o governo-geral em dois centros: um ao norte, com sede na Bahia, e um ao sul, com sede no Rio de Janeiro, na tentativa de aumentar os lucros com o monopólio do açúcar. Essa divisão, entretanto, não surtiu os resultados esperados, tornando-se Salvador, novamente, o único centro administrativo do Brasil em 1578. A partir de 1720, os governadores receberam o título de vice-rei, persistindo o cargo até a vinda da família real para o Brasil em 1808, quando se encerrou esse sistema.

[5]CRISTÃO VELHO: termo que designa o cristão, ou seja, aquele nascido e criado sob os preceitos e doutrinas da Igreja Católica, ou seja, justamente o contrário do “cristão-novo”. Os “cristãos-novos” eram os judeus recém convertidos ao catolicismo para escapar da perseguição promovida pela Inquisição àqueles considerados hereges.  A conversão foi o meio encontrado pelos judeus para escapar das fogueiras – castigo comumente dado ao herege -, embora, em verdade, eles mantivessem as práticas e costumes judaizantes em seus lares.

[6]LISBOA: capital de Portugal, sua origem como núcleo populacional é bastante controversa. Sobre sua fundação, na época da dominação romana na Península Ibérica, sobrevive a narrativa mitológica feita por Ulisses, na Odisseia de Homero, que teria fundado, em frente ao estuário do Tejo, a cidade de Olissipo – como os fenícios designavam a cidade e o seu maravilhoso rio de auríferas areias. Durante séculos, Lisboa foi romana, muçulmana, cristã. Após a guerra de Reconquista e a formação do Estado português, inicia-se, no século XV, a expansão marítima lusitana e, a partir de então, Portugal cria núcleos urbanos em seu império, enquanto a maioria das cidades portuguesas era ainda muito acanhada. O maior núcleo era Lisboa, de onde partiram importantes expedições à época dos Descobrimentos, como a de Vasco da Gama em 1497. A partir desse período, Lisboa conheceu um grande crescimento econômico, transformando-se no centro dos negócios lusos. Como assinala Renata Araújo em texto publicado no site O Arquivo Nacional e a história luso-brasileira (http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3178&Itemid=330), existem dois momentos fundadores na história da cidade: o período manuelino e a reconstrução pombalina da cidade após o terremoto de 1755. No primeiro, a expansão iniciada nos quinhentos leva a uma nova fase do desenvolvimento urbano, beneficiando as cidades portuárias que participam do comércio, enquanto são elas mesmas influenciadas pelo contato com o Novo Mundo, pelas imagens, construções, materiais, que vinham de vários pontos do Império. A própria transformação de Portugal em potência naval e comercial provoca, em 1506, a mudança dos paços reais da Alcáçova de Lisboa por um palácio com traços renascentistas, de onde se podia ver o Tejo. O historiador português José Hermano Saraiva explica que o lugar escolhido como “lar da nova monarquia” havia sido o dos armazéns da Casa da Mina, reservados então ao algodão, malagueta e marfim que vinham da costa da Guiné. Em 1º de novembro de 1755, a cidade foi destruída por um grande terremoto, com a perda de dez mil edifícios, incêndios e morte de muitos habitantes entre as camadas mais populares. Caberia ao marquês de Pombal encetar a obra que reconstruiu parte da cidade, a partir do plano dos arquitetos portugueses Eugenio dos Santos e Manuel da Maia. O traçado obedecia aos preceitos racionalistas, com sua planta geométrica, retilínea e a uniformidade das construções. O Terreiro do Paço ganharia a denominação de Praça do Comércio, signo da nova capital do reino. A tarde de 27 de novembro de 1807 sinaliza um outro momento de inflexão na história da cidade, quando, sob a ameaça da invasão das tropas napoleônicas, se dá o embarque da família real rumo à sua colônia na América, partindo no dia 29 sob a proteção da esquadra britânica e deixando, segundo relatos, a população aturdida e desesperada, bagagens amontoadas à beira do Tejo, casas fechadas, como destacam os historiadores Lúcia Bastos e Guilherme Neves (Alegrias e infortúnios dos súditos luso-europeus e americanos: a transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1807. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, nº1, p.29-46, jan/jun 2008. http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/86/86). No dia 30 daquele mês, o general Junot tomaria Lisboa, só libertada no ano seguinte mediante intervenção inglesa.

[7]D’AGUIAR, DR. DAMIÃO (1535-1618): jurista, nascido na cidade de Évora a 14 de abril, estudou Direito em Coimbra. Exerceu os cargos de Desembargador dos Agravos na Casa de Suplicação, em 1577, Desembargador do Paço, em 1581, e chanceler-mor do Reino. Foi também ministro do Senado da Câmara de Lisboa, Corregedor do Crime da Corte e presidente do Consulado-do-Mar. Chefiou a revisão das Ordenações Manuelinas, sob as ordens de Filipe II, ainda no século XVI. Em 1595, o projeto de Aguiar foi apresentado ao rei e aprovado, porém as chamadas Ordenações Filipinas, como ficou conhecida a reforma do código de leis manuelino, entraram em vigor somente em princípios do século XVII. Defensor da “limpeza de sangue”, vinculava-se à mais alta hierarquia da Igreja e à ação censória e arbitral do Santo Ofício. Detentor de um valioso patrimônio fundiário, reuniu também um notável acervo artístico composto por jóias, diferentes tipos de tecidos, quadros, retábulos, imagens religiosas, reposteiros.

[8]CONSELHO DAS ÍNDIAS: fundado em 1604 no reinado de Filipe III de Espanha, o órgão foi criado para organizar e centralizar a administração do império ultramarino português (Brasil, Estado da Índia, Guiné, São Tomé e Cabo Verde) que, desde 1581, estava inserido no vasto leque de territórios da monarquia dos Áustrias. Era formado por nove membros que se reuniam diariamente no Paço da Ribeira para analisar a correspondência proveniente das colônias portuguesas que chagavam aos portos lusitanos e elaborar pareceres que seriam enviados ao vice-rei de Lisboa. Este encaminharia sua avaliação ao Conselho de Portugal em Madrid, responsável pelo envio das diversas opiniões ao monarca. O conselho foi extinto em 1614.

 

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre “História das representações e das relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- A sociedade colonial: aspectos religiosos e culturais 
- As relações sociais de poder na colônia
- Brasil colonial: organizações religiosas
- A influência religiosa no Brasil colonial

Fim do conteúdo da página