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Vida Privada

Defloramento

Escrito por Super User | Publicado: Quarta, 31 de Janeiro de 2018, 19h34 | Última atualização em Sexta, 23 de Abril de 2021, 17h25

Requerimento judicial feito por Antônio de Freitas e Leocádia Rosa contra Antônio João Escórcio de Vasconcelos, acusado de seduzir e deflorar a jovem filha do casal. De acordo com o processo, Antônio João forjou sua defesa, fazendo um indivíduo trajado de padre ir fingir falar com a vítima e, dessa forma, induzir três testemunhas a acreditarem ter visto o padre José Gomes conversando com a jovem. O réu foi condenado a cinco anos de degredo para África e a indenizar a deflorada em quatrocentos mil réis, além de vinte mil réis para as despesas da Justiça. O documento permite uma visualização do tratamento dispensado pela justiça àqueles que cometessem esse tipo de ação no Brasil colônia.

 


Conjunto documental: Tribunal do Desembargo do Paço
Notação: caixa 219, pct. 03
Data-limite: 1808-1827
Título do fundo: Mesa do Desembargo do Paço
Código do fundo: 4K
Argumento de pesquisa: família, adultério
Data do documento: 3 de fevereiro de 1813
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

“Saibam quantos este instrumento dado e passado em público forma por Autoridade Judicial e a requerimento de parte que no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e treze aos três de Fevereiro nesta cidade do Rio de Janeiro em o meu escritório o requerimento de parte me foi apresentado uma certidão autêntica subscrita pelo escrivão da cidade de Funchal ... com o teor de uns autos crimes entre partes Antônio João Escórcio, e Antonio de Freitas e sua mulher Leocádia Rosa, de cuja certidão que se acha passada ... da mesma cidade de Funchal em dezesseis de novembro de mil oitocentos e nove me foi pedido pelo suplicante, lhe desse em pública forma o teor de dois Acórdãos[1] nele copiados cujo teor é o seguinte:

 

1º Acórdão

 

Acórdão em junta mostra-se acusarem os Autores ao réu Antônio João Escórcio de que este abusando da amizade e entrada que tinha na casa dos mesmos seduzira, e deflorara a uma sua filha por nome Joana que dele concebeu e pariu um filho. Defende-se o réu com a matéria de sua contrariedade ..., e não podendo negar, e escurecer o trato ilícito que lhe é argüido recorre ao expediente de imputar ao padre José Gomes o defloramento[2] da dita filha, e suposto algumas das testemunhas por ele produzidas confirmem a sua afirmação nesta parte, contudo não merecem crédito, nem podem pela sua qualidade e condição contrabalançar e iludir a concludente prova dos Autores firmadas nos depoimentos das testemunhas fidedignas, maiores de toda ocupação, que uniformemente afiançam a honra e bom comportamento da dita filha dos autores sem que ela em tempo algum fosse infamada, ou tivesse nota alguma no seu procedimento, como até depõem contra ... algumas das testemunhas do mesmo réu: o qual é também convencido de falsário e embusteiro; pois que fez ir um indivíduo revestido em trajes de clérigo fora de horas á horta dos Autores, e chegar-se a uma das famílias[3]  das casas dos sobreditos; fingindo falar com a estuprada; e induziu a três rústicos para que estivessem de parte vendo todo este fato, a fim de irem depois jurar que tinham visto o dito padre José Gomes ir a casa dos Autores falar à estuprada o que eles mesmos ao depor declararam quando conheceram toda a trama e embuste do réu como se vê dos seus juramentos e declarações ..., e assim como o réu induziu aquelas testemunhas para provar a sua patranha[4] da mesma sorte induziu ... as outras da Inquisição ... que por serem mulheres objetos pobres e de baixa condição facilmente depuseram tudo quanto o réu quis, e lhe insinuou. Portanto e o mais dos Autos condenaram ao réu em cinco anos de degredo[5] para África com pregão na Audiência quatrocentos mil réis para a indenização da injúria feita aos autores, vinte mil réis para as despesas da Justiça e nas custas e não deferem a pretensão do dote por ter a deflorada muito mais de dezessete anos ....”    

 

 

[1] ACÓRDÃO: decisão emitida em grau de recurso por um tribunal coletivo, administrativo ou judicial.

[2] DEFLORAMENTO: até ao menos a metade do século XX, a virgindade das mulheres tinha um valor especial na sociedade, sendo elemento indicativo de honra, da mulher e de sua família, sobretudo das ricas famílias patriarcais, e de certa forma, moeda de troca para a realização de bons casamentos entre iguais. Em uma sociedade na qual o poder pátrio determinava o destino das filhas que, depois de casadas, passavam para a “posse” do marido, as fronteiras entre o que era consentido e o excesso de violência também eram precárias. Havia uma diferenciação não explícita entre estupro e defloramento, no qual o primeiro envolvia formas de coação violenta e no segundo mais uma persuasão, fosse por sentimentos ou promessas. Na prática, os casos de defloramento muitas vezes envolviam agressão física contra a mulher e o seu não-consentimento no ato sexual. Os crimes de sedução e desonra já estavam previstos desde as Ordenações Afonsinas (1446-1448), mas foram consideravelmente aprimorados nas Ordenações Manuelinas (1512-1603) e Filipinas (1595), que estabeleciam punições mais duras e tratavam menos as mulheres como culpadas ou aliciadoras dos agressores. Não custa reforçar que as leis eram aplicadas entre iguais. Homens de posições sociais e cor diferentes não teriam as mesmas punições, os fidalgos, quase sempre, eram punidos com degredo, prisão e indenizações, já aos comuns, à plebe, ficavam reservadas as penas mais graves que incluíam a de morte. Uma questão frequentemente mencionada para os crimes de defloramento trata sobre o casamento do agressor com as ofendidas, “solução” para o crime que acabava com a ofensa e suspendia automaticamente as penas, o que não era sempre o caso, ao menos entre as famílias da boa sociedade colonial. Tanto os pais quanto as próprias mulheres deveriam concordar com o casamento, o que frequentemente ocorria, caso o candidato a noivo fosse homem de nascimento e posses inferiores às da possível noiva. Quando havia o casamento, era preciso que o pai concordasse com a suspensão da pena, o que poderia não acontecer. Nos casos de não haver casamento, ficava o agressor, além de sujeito às punições já mencionadas, obrigado a custear o casamento da mulher agredida e pagar uma espécie de indenização pela perda da virgindade, o que se chamava “demandar a virgindade”. A família agredida precisaria solicitar tal indenização, que teria o efeito de eliminar a mancha da honra da família e tornar a moça novamente “de qualidade” para um bom casamento. No Brasil, o crime de sedução e defloramento passou a ser tratado como estupro somente no Código Criminal de 1890 e no Civil de 1916, embora as punições continuassem a existir também no Código Criminal de 1830.

[3] FAMÍLIA: uma das principais instituições do Brasil colonial, a família foi marcada pela pluralidade e por experiências diversas, decorrentes de fatores como regionalização, origem social, gênero e etnia. Dentre as diversas camadas sociais, destacam-se as famílias patriarcais, que se tornaram as “poderosas instituições econômicas e políticas” do período. Através de casamentos e alianças, estas famílias criaram verdadeiros núcleos de poder, cuja estrutura fundiária serviu-lhes de base econômica, constituindo-se uma das principais heranças do período colonial. Uma interpretação clássica é a do sociólogo Gilberto Freyre, para quem a colonização do Brasil teve como pilar social a família patriarcal. O chefe da família e senhor de terras e escravos era a autoridade máxima, seguido de seus filhos, mulher, filhos bastardos, empregados, escravos domésticos e na base da pirâmide hierárquica, os escravos da lavoura. Ou seja, a instituição família não se restringia apenas ao núcleo formado por pai, mãe e filhos, mas faz referência a todos – grande número de criados, parentes, aderentes, agregados e escravos – que giram em torno do núcleo centralizador dos vários tipos de relação: o patriarca. Para o autor, a família teve papel central na formação do país, o “grande fator colonizador”, que povoou e tornou produtivas as terras descobertas. E, devido à distância do Estado luso, a família colonial brasileira transferiu o exercício de “mando” das relações privadas para o domínio público, ou seja, para o exercício político. O chefe de família também seria chefe de Estado, dividindo seu foco de atuação entre a casa e o governo. O governo da casa/ família, pautado na violência e submissão ao pater familia, refletia-se nas relações de poder entre o que Ilmar Rohloff de Mattos chamou de mundo do governo e mundo do trabalho, ou seja, os escravos. Trazer a ordem entre dominantes e dominados, assim como acontecia dentro da família, era manter, através de um controle que se exercia continuamente, a situação de classe dominante da elite econômica. Freire foi o grande idealizador da família patriarcal brasileira, considerando-a paradigmática do nordeste açucareiro. No entanto, afastado do contexto do engenho, existiam formas plurais de família. Em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, predominou a família nuclear (pais e filhos), além de um considerável número de famílias chefiadas por mulheres – a ausência dos homens é explicada pela necessidade econômica de sair em busca de riquezas, como no caso das bandeiras ou dos mascates. No Brasil colonial uma variedade de arranjos familiares se fez presente, independente da formalização do casamento, que usualmente se aplicava às famílias mais abastadas. Nas décadas de 1950 e 1960 autores como Florestan Fernandes e Roger Bastide apostaram na inexistência de famílias escravas, dada a superioridade numérica da população masculina e à opressão do cativeiro. Posteriormente Katia Matoso em Ser escravo no Brasil sugeriu que, a despeito da violência dos senhores, não deixou de haver laços de solidariedade entre os escravizados, ainda que não contestasse as teses anteriores. Em décadas recentes diversos estudos mostraram a constituição de famílias escravas tanto no Oeste paulista quanto no Vale do Paraíba no século XIX, com casamentos formais e núcleos familiares extensos (SLENES,Robert W., FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho. Tempo, Vol. 3 - n° 6, Dezembro de 1998. https://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg6-4.pdf). Finalmente, deve-se lembrar da união do português e da mulher indígena. Portanto, é fundamental considerarmos o dinamismo das formações familiares na América portuguesa, ainda que marcadamente patriarcal.

[4] PATRANHA: termo utilizado para referir-se à falta de verdade, histórias mentirosas, “conto fabuloso”, segundo Rafael Bluteau.

[5]  DEGREDO: punição prevista no corpo de leis português, o degredo era aplicado a pessoas condenadas aos mais diversos tipos de crimes pelos tribunais da Coroa ou da Inquisição. Tratava-se do envio dos infratores para as colônias ou para as galés, onde cumpririam a sentença determinada. Os menores delitos, como pequenos furtos e blasfêmias, geravam uma pena de 3 a 10 anos, e os maiores, que envolviam lesa-majestade, sodomia, falso misticismo, fabricação de moeda falsa, entre outros, eram definidos pela perpetuidade, com pena de morte se o criminoso voltasse ao país de origem. Além do aspecto jurídico, em um momento de dificuldades financeiras para Portugal, degredar criminosos, hereges e perturbadores da ordem social adquiriu funções variadas além da simples punição. Expulsá-los para as “terras de além-mar” mantinha o controle social em Portugal e, em alguns casos também, em suas colônias mais prósperas, contribuindo para o povoamento das fronteiras portuguesas e das possessões coloniais, além de aliviar a administração real com a manutenção prisional. Constituindo-se uma das formas encontradas pelas autoridades para livrar o reino de súditos indesejáveis, entre os degredados figuraram marginais, vadios, prostitutas e aqueles que se rebelassem contra a Coroa. Considerada uma das mais severas penas, o degredo só estava abaixo da pena de morte, servindo como pena alternativa designada pelo termo “morra por ello” (morra por isso). Porém o degredo também assumia este caráter de “morte civil” já que a única forma de assumir novamente alguma visibilidade social, ou voltar ao seu país, era obtendo o perdão do rei.

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- Práticas e costumes coloniais
- A manutenção  do sistema colonial
- Estrutura administrativa colonial
- Brasil colonial: sociedade, delitos e transgressões

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