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Quilombos e Revoltas de Escravos

Pena de Morte

Escrito por Super User | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 13h45 | Última atualização em Quarta, 18 de Agosto de 2021, 14h25

Acórdão proferido por Francisco Lopes de Souza de Faria Lemos sobre os autos do réu, Albano, oficial de ferreiro. Segundo o documento, réu teria atacado com uma faca o seu senhor, golpeando-o até a morte, e ferido a mulher do falecido. Tendo confessado judicialmente o delito, o réu foi condenado à pena de morte na forca com a posterior mutilação do seu corpo para não se tornar um exemplo perigoso.

 

Conjunto documental: Tribunal do Desembargo do Paço
Notação: caixa 219, pct.01
Fundo ou coleção: Mesa do Desembargo do Paço
Datas limites: 1809-1826
Código de fundo: 4K
Argumento de pesquisa: quilombos
Data do documento: 3 de abril de 1810
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): doc. 02 

 

Leia esse documento na íntegra


Acórdão[1] em relação V.Sª . Vistos estes autos, que com o parecer do seu regedor[2] se fizeram sumários ao réu preso Albano, oficial de ferreiro, por haver morto seu senhor Manoel de Oliveira dos Santos, e ferir sua senhora, mulher deste, d. Thomásia Theodora do Rosário. Mostra-se que o réu, trazendo má vontade ao dito seu senhor por não querer consentir no quartamento[3] por ele pretendido, fizera uma faca, que trazia sempre consigo para se aproveitar da primeira ocasião que tivesse de executar o bárbaro desígnio de se vingar do falecido, e que de fato oferecendo-se-lhe esta manhã do dia 29 de outubro de 1798, pelo repreender o dito seu senhor, se lançou sobre ele com aquela própria faca, como reconheceu no auto (...), até o matar, dando-lhe o primeiro golpe no rosto, que rasgou do canto da boca até a orelha esquerda; segundo no peito da parte esquerda, que penetrou até o coração, que se via, abrindo-se os lábios de tão cruel ferida; e o terceiro golpe no ombro, ao tempo de cair morto, o que presenciavam todas as testemunhas (...). Mostra-se mais, que o animo do réu era o de matar toda aquela família, se o pudesse conseguir; porquanto, acudindo a mulher do morto, para livrar seu marido, se voltou também contra ela  o réu com a mesma faca, procurando, e forcejando quanto lhe foi possível para o matar, o que não conseguiu pela fortuna, que sua senhora teve de receber grave todas as facadas em um capote, que trazia aos ombros, e de que se valeu para as aparar, ficando crivado delas, exceto uma facada que a feriu profundamente no braço, varando-o de parte a parte, e de lhe acudir a testemunha (...) Manoel Vieira, que assim jura de fato próprio, o qual era aprendiz do réu, e lhe descarregou então uma bordoada na cabeça, que o tonteou; motivo porque não pôde ultimar seu intento, e por acudir também um filho dela, tomando o réu a deliberação de se ir valer de uma espingarda, que de antemão tinha pronta, e carregada em sua senzala[4], para de uma vez acabar com todos, como ele ameaçou praticar; pelo que o dito filho temeroso de ser morto com sua mãe, lançou mão de outra espingarda, e com ela prevenindo-se, atirou logo sobre o réu, ferindo-lhe gravemente, e a ponto de o derrubar por terra; do que resultou não poder ele continuar nos seus execrandos atentados como juram uniformemente de notoriedade, e publicidade constante todas as testemunhas do sumário, e da devassa[5], e de vista as testemunhas (...). O réu não se atreveu a negar, ou a obscurecer a enormidade do delito no auto (...), fazendo uma confissão judicial justa, clara, espontânea, e absolutamente uniforme com o juramento das testemunhas presentes, que super abundantemente atestam a existência do mesmo delito, e o deliberado ânimo, com que o réu o perpetrou, estendendo-se a sua ferocidade até contra a mulher, e filho do morto, seu senhor: pelo que resulta do processo a prova inteira, e segura, que o Direito requer para a imposição da pena de que o réu não pode ser relevado, quando consumou não só um homicídio, que é crime atrocíssimo, de que se horroriza a natureza, porém um homicídio que na censura de direito equivale ao parricídio, atentando contra a segurança pública, e até contra aquela da própria família, de que ele fazia parte, e rompendo a subordinação, que o mesmo Direito estabelece do Escravo para o Senhor, e que manda que se regulem as penas à proporção da gravidade do delito, a qual se conhece pelo dano que recebe a Sociedade Civil da Sua perpetração; sendo certo, que é tanto mais execrável, quanto são mais respeitáveis os direitos perfeitos, que se quebrantam: Do que se infere, que o réu cometeu uma morte violenta, que deu a seu senhor, um delito de funestíssimas conseqüências, e pela impunidade do qual se dará um perigosíssimo exemplo em dano da existência política deste Estado, que se faz a Suprema Lei em todos os casos.Portanto, e pelo mais dos outros, condenem ao réu a que com baraço e pregão seja conduzido ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre, e que separada depois a cabeça, e decepadas as mãos, sejam postas na mesma forca, até que o tempo as consuma, e pague as custas. Rio, 3 de abril de 1810.= Como Reg.or Botelho = Souza = Baptista Rodrigues = D. Amorim = Saraiva = Negrão Coelho = Ordonhes =. Francisco Lopes de Souza de Faria Lemos.” 

 

[1] ACÓRDÃO: trata-se de uma decisão emitida em grau de recurso por um tribunal coletivo, administrativo ou judicial.

[2] REGEDOR: autoridade administrativa civil nomeada pela Câmara Municipal para manter a ordem em determinada freguesia. Eram cargos providos pelo presidente da Câmara e tinham função de autoridade policial.

[3] QUARTAMENTO: também chamado de coartação, era um sistema de pagamento parcelado da alforria devido ao senhor pelo escravo. As alforrias podiam ser concedidas ou compradas, e neste caso, nem sempre o escravo conseguia amealhar todo o valor de uma vez, então fazia a coartação, na qual parcelava o valor, habitualmente por ano ou semestre (ao menos nas Minas Gerais, onde foi bastante comum entre os séculos XVIII e XIX), em um total de quatro a seis anos, podendo haver variações. Enquanto pagava, o estatuto permanecia sendo escravo – caso uma escrava tivesse filhos nesse intervalo, seriam também cativos, até que o pagamento fosse finalizado. Os escravos conseguiam reunir algum pecúlio quando trabalhavam ao ganho ou por jornada (na qual já pagavam ao senhor uma parcela do resultado obtido com seu trabalho); quando faziam trabalhos fora de suas atividades habituais; na região de minas ou rurais, com o garimpo e a criação de animais ou produção de alimentos; e também com a ajuda de irmandades negras ou de esmolas.

[4] SENZALA: alojamento destinado à moradia dos escravos de uma fazenda ou de uma casa senhorial. O termo senzala é originário da língua banto (ramo de vários idiomas da África centro ocidental) e popularizou-se no Brasil através destes povos, sobretudo a partir do final do século XVIII. As moradas dos cativos também eram chamadas pelos viajantes e pela população local de choça, cabana, choupana, palhoça e mocambo, sendo ainda denominadas simplesmente de “casa de negros”. Robert Slenes, em Na Senzala, uma flor (2011), distingue três tipos de moradia: as senzalas " pavilhão”, edifício único com pequenos recintos ou cubículos separados para os escravos solteiros e casados, as senzalas " barracão”, onde viveriam escravos e escravas solteiros em grandes recintos separados, e as senzalas " cabana" , onde viveriam escravos casados ou solteiros de um mesmo sexo. Havia também a senzala em quadra, isto é, edifícios contínuos erigidos em formato retangular e subdivididos em compartimentos ou cubículos, todos voltados para um terreiro ou pátio com entrada única guardada por um portão de ferro. No Brasil, as senzalas geralmente ficavam próximas da habitação da família proprietária, ao contrário de outros lugares das Américas. Essa proximidade permitia maior vigilância sobre os escravos, mas também abria caminho para que os diferentes grupos – brancos e negros – partilhassem alguns traços culturais e linguísticos. A senzala acabou por se tornar local de reconstrução, na medida do possível, de uma identidade partida, onde laços entre grupos oriundos de regiões e etnias diferentes acabavam se formando em consequência da convivência forçada.

[5] DEVASSA: a devassa era um processo ou rito processual judicial estabelecido nas Ordenações do Reino, de natureza criminal, com características inquisitoriais, que concedia pouco ou nenhum direito de defesa ao acusado. Esse rito processual vigorou no Brasil até a promulgação do Código Criminal do Império, em 1830. Nas Ordenações Filipinas, assim como previsto nas Manuelinas, as devassas se dividiam em gerais e especiais: as gerais versavam sobre delitos incertos e eram realizadas anualmente, sendo de competência do juiz de fora, ordinários e corregedores; as devassas especiais supunham a existência de um delito já cometido, cuja a autoria era incerta. A primeira tinha por objetivo o delito de autor incerto e eram tiradas uma vez por ano; a segunda se ocupava somente da autoria incerta. (Lucas Moraes Martins. Uma Genealogia das Devassas na História do Brasil. http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3245.pdf). Havia também as devassas eclesiásticas, instrumento extrajudicial e temporário acionado por ocasião da presença do visitador do Tribunal Eclesiástico a uma localidade, em geral longe dos centros, com o objetivo de observar o controle dessa população no tocante ao cumprimento da doutrina católica e à conduta atentatória à família e aos bons costumes. Um Auto de Devassa é uma peça produzida no decorrer do processo judicial que reúne as petições, termos de audiências, certidões, entre outros itens.

 

 

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