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Grão Pará e Maranhão

Rendimentos do comércio dos índios

Publicado: Terça, 06 de Fevereiro de 2018, 19h25 | Última atualização em Segunda, 01 de Fevereiro de 2021, 18h04

Correspondência de Fernando da Costa de Ataíde Teive, governador do Estado do Grão-Pará, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, na qual remete as contas do tesoureiro geral dos índios referentes ao ano de 1768. No mapa constam as localidades das capitanias do Pará e Rio Negro, e o rendimento de produtos como cacau, salsaparrilha, peixe boi, tainhas secas, potes de manteiga, tartarugas, carne de porco do mato, potes de peixe frito, tijolos e telhas, para serem apresentados à rainha. É importante notar que a data do documento é posterior ao falecimento de Mendonça Furtado, o que leva a crer que a notícia de sua morte ainda não havia chegado à capitania quando Teive remeteu as contas a Lisboa.

Conjunto documental: Correspondência original dos governadores do Pará com a Corte. Cartas e anexos
Notação: códice 99, vol. 02
Datas-limite: 1768-1771
Título do fundo: Negócios de Portugal
Código do fundo: 59
Argumento de pesquisa: Pará, capitania do
Data do documento: 14 de janeiro de 1770
Local: Pará
Folha(s): 152-153

 

Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor

Remeto a vossa excelência as contas do tesoureiro geral dos índios, que se lhe tomaram pertencendo ao ano de 1768, e o mapa dos rendimentos das vilas, e lugares dos mesmo índios das capitanias do Pará[1], e Rio Negro[2], para serem presentes a sua majestade.

Deus guarde a vossa excelência. Pará a 14 de janeiro de 1770.

Fernando da Costa de Ataíde Teive[3]

Senhor Francisco Xavier de Mendonça Furtado[4]

Segunda via

 

Mapa geral do rendimento que houve na tesouraria do comércio dos índios este presente ano de 1769 de todas as vilas e lugares

Vilas e lugares

cacau[5] a 1500

cravo[6] fino a 4500 réis

salsa[7] a 3000 réis

peixe boi[8]

peixe grosso seco[9]

potes de manteiga[10]

alqueires de farinha[11]

8 Conde

548

//

//

103$21

//

14

//

11 Colares

//

//

//

//

5$4

//

131

12 Cintra

//

//

//

//

10$12

//

//

26 Soure

//

//

//

//

336$6

//

6

27 Chaves

//

//

//

//

[165$28]

//

//

49 Nogueira

[130$6]

//

17$20

[66$20]

//

//

//

soma total

672$7

683$7

1259$11

1847$6

[1638$3]

1568

[2.110]

* A tabela é extensa. Alguns produtos e localidades não foram transcritos.

 

[1] A etimologia do nome da antiga unidade administrativa decorre do rio Pará, derivado do tupi-guarani pa'ra que significa rio do tamanho do mar ou grande rio devido sua grande extensão. No ano de 1621, a colônia americana portuguesa foi dividida em dois territórios administrativamente separados que respondiam ambos diretamente a Lisboa: o Estado do Brasil, com sede em Salvador, e o Estado do Maranhão, com centro administrativo em São Luís. O Estado do Maranhão e Grão-Pará permaneceu com essa designação até o ano de 1751, quando no reinado de d. José I e do gabinete de Sebastião José de Carvalho e Melo, transfere a capital administrativa de São Luiz para Belém (fundada em 1616) e passa a se chamar Estado do Grão-Pará e Maranhão. O Estado do Grão-Pará e Maranhão era composto pelas capitanias do Pará, Maranhão, Piauí e Rio Negro, mantida essa estrutura até o ano de 1772/1774, quando o governo português resolve dividir o Estado do Grão-Pará e Maranhão em duas unidades administrativas distintas: o Estado do Grão-Pará e Rio Negro (1772/1774 -1850), ficando a capitania do Rio Negro Subordinada ao Pará, e o Estado do Maranhão e Piauí (1772/1774-1811), ficado a capitania do Piauí subordinada ao Maranhão. Ambas, as unidades administrativas criadas ficaram subordinadas diretamente a Lisboa (SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). Tese de doutorado em História. USP, 2008). As conquistas do norte eram inicialmente subordinadas ao Estado do Maranhão, que não conseguia defender toda a vasta região amazônica, além de expandir as fronteiras para o oeste. Para tentar efetivar a apropriação do território e conter o alcance da influência dos religiosos nas missões e aldeamentos, a Coroa criou e distribuiu sistematicamente, entre 1615 e 1645, capitanias e sesmarias ao longo do rio Amazonas. As capitanias que compunham o Estado do Maranhão no século XVII eram Pará, Maranhão e Piauí – reais – e Cumá, Caeté, Cametá e Marajó (ou Ilha Grande de Joanes), estas particulares e subordinadas às da Coroa. O regime das capitanias permaneceu em vigor desde 1615 até 1759, quando o marquês de Pombal, primeiro-ministro de d. José I, reformulou o sistema, incorporando todas à Coroa e dando uma nova configuração ao Estado do Grão-Pará e Maranhão. O Grão-Pará representou grande possibilidade de riqueza para colonos e colonizadores, interessados nas drogas do sertão e nas terras indígenas. O setecentos, sobretudo na segunda metade, foi um período profícuo para a região, devido à intensificação do comércio das drogas e ao incentivo às culturas agrícolas, como o cacautabacocaféalgodão, entre outros, promovidos pela Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e resultante da expulsão dos jesuítas, que controlavam o comércio com os índios.

[2] Criada em 1755, por influência do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado para facilitar a administração dos vastos e ermos territórios do Estado do Grão-Pará, a capitania de São José do Rio Negro permaneceu subordinada a esse Estado até 1805, quando passou a responder diretamente à administração central do Rio de Janeiro. Equivalia aproximadamente a região hoje dos estados do Amazonas e Roraima, áreas estratégicas nas questões de limites com a América espanhola. Como o estado do Grão-Pará e Maranhão era um território muito grande e difícil de administrar somente a partir de Belém, Furtado sugeriu à Coroa a criação de uma nova capitania, subordinada a ele, mas com administração em sede própria, mais ao interior. A primeira capital da capitania foi a aldeia de São José do Javari, passando, em 1758, para a vila de Mariuá, que depois se tornou Barcelos; o primeiro a governá-la foi o coronel Joaquim de Melo e Póvoas. Para incrementar a ocupação, a Coroa concedeu privilégios aos colonos, como isenção de pagamento de tributos, perdão de dívidas, além da doação de sesmarias para a agricultura. Até o século XVIII, a presença de colonos portugueses na região da nova capitania se verificava ao longo do rio Amazonas, baseando-se em dois tipos de núcleos populacionais, as missões, controladas por religiosos de diversas ordens, mais notadamente jesuítas, e as fortalezas em pontos estratégicos da bacia do Amazonas, onde se formavam pequenas aldeias e povoamentos. Os principais objetivos desses núcleos eram promover a “civilização” dos índios e rechaçar possíveis invasões europeias pelo rio. Foi somente a partir da governação de Mendonça Furtado, que se começou a elaborar um plano de ocupação do território e domínio das fronteiras, melhorando a comunicação entre as capitanias do Norte. Na década de 1750, fortalezas foram erguidas com a finalidade de defender a região, fornecer gêneros e auxiliar na “pacificação” dos índios. As missões tornaram-se vilas com administração laica e subordinadas ao governo da capitania, num processo acentuado de retirada dos religiosos das funções que cabiam ao poder do Estado. Para povoar mais densamente e consistentemente o território a Oeste, cuja população era composta maciçamente de índios, alguns brancos, e poucos negros, a administração promoveu a criação de vilas e a vinda de imigrantes europeus (lusos). A missão destes colonos seria fomentar a agricultura, tanto de gêneros para subsistência como feijão e milho, como outros para exportação, como cacau, tabaco e café, por exemplo, e a coleta das drogas do sertão. As dificuldades inerentes à região, como a pobreza do solo, o clima, as pragas e a falta de braços, puderam ser verificadas em diversos momentos de crise de abastecimento sofridas pela capitania ao longo do setecentos e do oitocentos. O período áureo da região aconteceria a partir dos últimos anos do século XIX e primeiras décadas do XX, com o ciclo da borracha.

[3] Nascido em Lisboa, era filho e neto de fidalgos e aristocratas do reino. Tinha um longínquo, mas, ainda assim, significativo laço de parentesco e apadrinhamento com o marquês de Pombal e seu irmão, Mendonça Furtado, o que provavelmente lhe rendeu – somado também a sua experiência militar atuando em regiões de fronteiras – a indicação para capitão-general do estado do Grão-Pará e Maranhão em 1763. Neste cargo, fora incumbido de proteger os limites da capitania; promover o povoamento e ocupação do estado, sobretudo das regiões consideradas mais “frágeis” aos ataques estrangeiros; fazer a região prosperar economicamente, estimulando a agricultura, a cultura e coleta das drogas do sertão e assegurar, ainda, a liberdade dos índios, conforme estabelecido no Diretório de 1757 [Diretório dos índios]. O processo de civilização dos índios, iniciado com a publicação do Diretório e a expulsão dos jesuítas, era uma diretriz importante para sua administração e para garantir a presença de vassalos do rei nos territórios do norte, especialmente aqueles próximos às fronteiras com a América hispânica. Teive foi o responsável pela criação de vilas e pela vinda de imigrantes portugueses e de outras partes do império para introduzir novas lavouras, colonizar o interior e produzir riquezas. Um dos locais que mais recebeu atenção e povoamento durante seu governo foi a vila de São José de Macapá, estratégica por sua localização na foz do rio Amazonas e importante para assegurar a segurança do território. Outro projeto ambicioso realizado durante seu governo foi a transferência da praça de Mazagão, do Marrocos, para uma região próxima de Macapá, processo iniciado em 1769. Devido a expansão muçulmana no norte da África, Pombal decidiu que a população de Mazagão – possessão portuguesa em Marrocos – seria transferida para o Grão Pará, estimulando o povoamento da região que necessitava de garantia de soberania. Desse modo, foi fundada a vila de Nova Mazagão. Em 1772, Ataíde Teive foi destituído do cargo pelo primeiro ministro do reinado mariano, Martinho de Melo e Castro, acusado de graves falhas durante sua administração, como arbitrariedades, favorecimentos, desvios de conduta e de arrecadação. Retornou a Portugal e à carreira militar em 1773, falecendo cinco anos depois.

[4] Nascido em Lisboa, o irmão do marquês de Pombal ingressou na Marinha em 1735 e concluiu os serviços em 1751, como capitão de mar e guerra. Neste mesmo ano, fora indicado para ocupar o governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão. O território brasileiro não lhe era estranho — durante o período em que esteve em serviço participou de algumas missões na colônia, que lhe possibilitaram experiência em defesas das fronteiras e conhecimento que contaram para sua indicação ao posto de governador do Estado, pelo irmão, então primeiro-ministro de d. José I. Foi, portanto, o braço do governo pombalino nas capitanias do norte, responsável pela demarcação dos limites estabelecidos no Tratado de Madri de 1750 entre Portugal e Espanha; pela criação de vilas; por incentivar o povoamento, criando, em 1755, a capitania do Rio Negro; por resolver as questões relativas aos indígenas e à mão de obra, introduzindo escravos africanos; pelo incentivo à agricultura, à coleta das drogas do sertão e pelo maior controle do comércio entre metrópole e colônia, visando a evitar o contrabando, além de ter sido o criador da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Considerado por Furtado o maior problema do Estado, a presença e controle que os religiosos, sobretudo jesuítas, detinham na esfera religiosa e temporal, mereceram bastante atenção e ação enérgica do governador. Seguindo orientação da Coroa, foi o responsável por uma nova política em relação aos índios, promulgando uma série de leis e alvarás que lhes concedia liberdade e reconhecimento como vassalos do rei, e abolindo o domínio religioso sobre as missões e aldeamentos. Essas medidas culminaram na publicação, em 1757, do Diretório dos índios, conjunto de normas para civilização e integração dos indígenas na sociedade e no sistema colonial português. Essas medidas levaram paulatinamente, à expulsão dos jesuítas em 1759, e à introdução de escravos africanos nos territórios do norte. Furtado também cuidou da demarcação e defesa dos limites do Estado, depois de longa viagem descendo o rio Amazonas, que renderam um Diário de Viagem e conhecimento precioso das capitanias, que lhe possibilitaram tomar medidas necessárias para o melhor povoamento e fortificação das áreas mais estratégicas. Regressou a Lisboa em 1759 e três anos depois foi nomeado secretário de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos, cargo que exerceu até 1769, quando faleceu.

[5] Fruto do cacaueiro (Theobroma cacao L.), árvore nativa do Brasil e da América Central, encontrada dispersa em florestas tropicais. Na América Central já era usado na alimentação como bebida, no preparo do chocolate, ou de outros alimentos. O primeiro contato dos europeus com o cacau data de 1502, quando Colombo, na quarta viagem à América, encontrou um grande barco nativo transportando, entre outras mercadorias, uma espécie de amêndoas (amêndoas do dinheiro) usadas pelos índios como moeda (“moeda da felicidade”) e com as quais preparavam uma bebida deliciosa. A importância do cacau nas trocas comerciais foi tão grande que se manteve em circulação em muitas regiões americanas até meados do século XIX. Até o século XIX toda a produção de cacau era obtida do continente americano. A exploração do cacau na Amazônia brasileira começou, ainda no século XVII, colhido por índios que desciam o rio Amazonas, coletavam os frutos na mata e os enviavam à metrópole. Essa atividade requeria a autorização da administração colonial, que regulava, por meio de licenças, a quantidade de canoas que poderiam circular, o que limitava a quantidade do produto colhida nos primeiros anos. Entre 1678 e 1681, houve tentativa, por parte da Coroa portuguesa, de introduzir uma variedade de cacau já domesticada na região norte, estimulando a plantação por colonos. Todavia, a empreitada não foi adiante, apesar das vantagens concedidas em isenção de impostos, sobretudo devido à facilidade de se encontrar o cacau nativo disperso na floresta e o baixo custo para obtê-lo. O cacau amazônico tinha grande mercado na Europa e as licenças para o recolhimento do fruto aumentavam expressivamente, chegando a representar quase 90% de todas as exportações da região norte para a metrópole. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão deteve o monopólio do comércio e o cacau representou cerca de 80% de seu total de exportações, sendo o principal produto da companhia até sua extinção em 1777. No reinado de d. José I a cultura do cacaueiro se instalou no Brasil, em especial na Bahia, onde a planta encontrou solo e clima bastante adequados para o plantio, sendo até hoje região de notável produção. A partir de meados do XVIII, a produção por livre coleta começou a lentamente declinar. No princípio do século XIX, o cacau ocupava o 6º lugar entre os produtos coloniais mais exportados para a Europa.

[6] Também chamado cravinho ou apenas cravo, o Syzigium aromaticum (L.) é uma das especiarias de uso mais antigo, principalmente no Oriente. Botão da flor do craveiro, o cravo, depois de seco, é usado para temperar e aromatizar pratos. É também conhecido por suas propriedades medicinais e de perfumaria, como um poderoso antisséptico (era mascado para refrescar o hálito) e usado para melhorar o odor de ambientes. O cravo-da-índia, juntamente com a pimenta, a canela e a noz moscada, era a especiaria mais consumida na Europa no século XV e uma das mais caras. Originária das ilhas Molucas, na Indonésia, já era bastante conhecida e utilizada na China desde os séculos III-II a.C. Durante a Idade Média entrou na rota dos comerciantes árabes que transportavam produtos orientais para a Europa, passando por Constantinopla. A partir do século VIII, o comércio e uso do cravo se intensificaram no Mediterrâneo a preços muito altos. Esse comércio lucrativo acabou também por impulsionar que os europeus, sobretudo os portugueses, se lançassem aos mares em busca de rotas que permitissem buscar o cravo diretamente das “índias” e monopolizar sua venda na Europa. Em 1511, os portugueses chegaram às Molucas e verificaram nas ilhas quantidade de cravo suficiente para abastecer o Reino e ainda vender o que excedesse. Até chegar ao mercado europeu, a mercadoria percorria um longo caminho: era, primeiramente, escoada para Malaca, depois Goa, só então seguindo para o Mediterrâneo. Tal trajeto encarecia o preço da especiaria e logo essa atividade tão lucrativa despertaria o interesse dos holandeses que chegaram às ilhas produtoras no início do XVII e conseguiram expulsar os portugueses, passando a controlar o comércio do cravo. O monopólio da produção restringiu-se ao Oriente e às ilhas até meados do Setecentos, quando o cravo começou a ser plantado com sucesso em regiões da África e das Américas. As primeiras mudas levadas para Caiena datam de 1773, e os registros oficiais apontam que chegaram ao Brasil, na Amazônia, em finais do XVIII. No entanto, a produção em larga escala só foi registrada no Oitocentos. Mapas comerciais e balanços do Estado do Grão-Pará e Maranhão apontam que já havia produção de cravo na região, que figurava entre as drogas do sertão, e que o produto já era exportado para Portugal em fins dos anos 1760.

[7] Considerada uma especiaria, ou droga do sertão, essa planta (um cipó), originária da América Central e do Sul, era conhecida e apreciada por suas propriedades medicinais e pelo uso como condimento na culinária indígena da Amazônia. No Brasil, várias espécies de salsaparrilha (Smilax Spp.) ocorriam naturalmente em quase todo o território, de norte a sul, e era também chamada de japecanga, pelos índios; raiz da China, pelos portugueses – devido à semelhança com a espécie chinesa – e uma dezena de outros nomes. As folhas e frutos eram usados na alimentação como temperos, mas seu emprego mais popular e importante era como remédio. De propriedades depurativas e diuréticas, extraía-se das raízes um medicamento usado no tratamento contra afecções de pele, reumatismos, febres, mas principalmente contra a sífilis (ou bouba), doença venérea que assolava a população da colônia. Nos séculos XVIII e XIX tornou-se um produto de destaque nas exportações do Estado do Grão-Pará para a metrópole. Sua destacada função medicinal contribuiu para o declínio da salsaparrilha como alimento ao longo do tempo.

[8] Os peixes-boi, ou manatis, como são chamados na América Central e África, são sirênios, mamíferos aquáticos herbívoros, que ocorrem nas costas americanas, africanas e asiáticas, e em rios de água doce. No Brasil, encontramos a espécie marinha (Trichechus manatus) no litoral do nordeste e o peixe-boi amazônico (Trichechus inunguis), também chamado pelos portugueses de vaca marinha, espécie menor do que os parentes marítimos, que vive exclusivamente em água doce. A exploração do peixe boi amazônico remonta ao início da colonização portuguesa no norte, relatada pelo colono Gabriel Soares de Souza em seu Notícia do Brasil ou Tratado descritivo do Brasil (1587): “Goaragoá é o peixe que os portugueses chamam boi, que anda na água salgada  e nos rios junto da água doce (…). A carne é muito gorda e saborosa; e tem o rabo como toucinho sem ter nele nenhuma carne magra, o qual derretem como banha de porco, (…), que presta para tudo que presta a de porco (...)”. Outros colonos e viajantes em passagem pelo Brasil registraram a pesca e os usos do peixe-boi, especialmente o consumo de sua carne, como Fernão Cardim em 1583 em Tratados da terra e gente do Brasil; Spix e Martius entre 1817 e 1820 nas anotações de sua Viagem pelo Brasil; Henry Bates em O naturalista no rio Amazonas de 1850; o casal Agassiz em Viagem ao Brasil  de 1867, entre muitos outros. Com impressões que variavam pouco, a maior parte dos escritores, ressaltava e se impressionava com o tamanho do animal que, apesar de ser considerado um peixe mais se assemelhava a um boi, com a paladar de sua carne, e com o fato de amamentar sua cria. Seus principais usos eram a carne, muito apreciada, comparada, conforme o preparo, à de boi ou de porco – nunca à de peixe –, que podia ser cozida, assada à moda de um churrasco, ou salgada para que durasse, já que um único peixe-boi poderia alimentar muitas pessoas. Outra característica importante do herbívoro era sua preciosa gordura, ou banha, que entremeava a carne e se acumulava na cauda. Ao ser retirada e derretida, era considerada tão boa quanto a do porco, além de saborosa e de alta durabilidade. Usada para cozinhar e fritar outros alimentos (como um azeite); para conservar a carne já frita dentro e, também, como manteiga, era artigo raro e caro naquela região da colônia. O couro e os ossos do peixe ainda eram aproveitados, o que o tornava muito útil e considerado uma droga do sertão de alto valor. A docilidade dos animais, a despeito de seu tamanho, aliada ao seu valor, faziam deles presas relativamente fáceis e foram sendo mortos indiscriminadamente ao longo da história. Espécie considerada ameaçada pela caça predatória e devido ao impacto no meio ambiente e em seu habitat natural, entrou em risco de extinção no século XX e, atualmente, diversos programas de proteção se encarregam de recuperar a espécie em cativeiro, que ainda é alimento importante para as populações ribeirinhas dos rios da Amazônia.

[9] Durante o período colonial, a ideia de secar o peixe para depois comê-lo atendia, principalmente, a uma necessidade de conservação do alimento. O peixe apenas seco ou salgado durava aproximadamente um ano para o consumo. A técnica pressupunha abrir o peixe, remover o fato (as entranhas), desossar, retirando a cabeça, a espinha e as escamas, e, posteriormente, secá-lo ao sol, nos telhados ou nos terreiros, sobre um jirau – armação de madeira, semelhante a uma grelha. Deixa-se no mínimo dois dias no sol, retirando-se à noite, e depois de seco, guarda-se em um paneiro (cesto de palha), ou em sacos de algodão em caixas. Outro método muito utilizado na secagem ao longo de todo o período colonial e descrito por diversos viajantes que passaram nas capitanias do norte, entre eles Spix e Martius e Henry Bates, que o descreveram mais detidamente, era o de moquear o peixe. Consistia em, depois de limpo, em vez de expô-lo ao sol, colocar o peixe para secar sobre uma grelha de paus sobre o fogo, técnica que, ao mesmo tempo, secava e defumava a carne. A inclusão do sal, muito frequente, acontecia depois da limpeza, e depois era seco das maneiras já descritas. Segundo Câmara Cascudo em História da Alimentação no Brasil, o peixe seco e salgado passou a ser mais consumido no Brasil, especialmente no Norte, depois do contato com os europeus e africanos, que o introduziram na culinária e nos costumes locais. Era consumido, principalmente, durante o “inverno”, ou período da seca, quando a pesca era mais difícil, para ser levado em viagens ou caçadas. O tipo mais comum de peixe é o pirarucu, muito grande para ser consumido de uma só vez, e que podia servir de alimento para uma família durante vários dias. Peixe de “couro grosso”, melhor para salgar, carnudo e saboroso, dele se aproveitavam sobretudo as partes mais nobres, e era considerado por portugueses e estrangeiros o bacalhau brasileiro.

[10] Embora a palavra manteiga possa se referir a vários compostos de gordura e água, como a manteiga de amendoim, manteiga de jabuti – comum no interior do Brasil na época colonial – e manteiga de cacau, o termo sozinho designa o produto derivado do leite extraído da vaca. Surgida cerca de 3.000 anos antes de Cristo, era utilizada por gregos e romanos como unguento ou medicamento de uso externo. Ingrediente fundamental na culinária portuguesa, em especial nos doces e sobremesas, a manteiga durante muito tempo foi artigo raro no Brasil colônia, mesmo entre as elites. A manteiga consumida no Rio de Janeiro no início do século XIX ainda era rançosa, do tipo vermelha importada da Inglaterra e precisava ser lavada antes do consumo.

[11] Preparada a partir de uma raiz tropical conhecida como mandioca ou aipim, que pertence a uma única espécie, a Manihot esculenta, e apresenta centenas de variedades. A maioria é venenosa, pois contém ácido cianídrico (HCN). A cultura da mandioca era bastante comum entre as populações indígenas, quando os portugueses aqui chegaram. A produção da farinha entre os índios é um trabalho tradicionalmente realizado pelas mulheres que processam as raízes venenosas para eliminar o ácido cianídrico, utilizando o tipiti. Este instrumento consiste num cesto cilíndrico extensível, com uma abertura na parte superior, na qual se coloca a massa de mandioca amolecida. Nas extremidades do tipiti existem alças que permitem fazer sua torção para se extrair a água combinada ao HCN. Livre da água e do veneno, essa massa era colocada em panelas ou frigideiras de barro para secar e, só depois, era ralada para se obter a farinha, que podia apresentar uma consistência muito dura e seca, usada como suprimento alimentar nas expedições guerreiras, ou transformar-se em um polvilho branco, usado para fazer os beijus de tapioca. A mandioca era também a base do cauim, bebida pelos índios durante três dias antes dos rituais do canibalismo, levando à condenação de seu consumo entre os cristãos. Apenas algumas variedades podem ser aproveitadas após o simples cozimento: a mandioca doce ou aipim (Rio de Janeiro) também denominada macaxeira (Nordeste). No século XVI, os portugueses encontraram a mandioca domesticada pelos indígenas, adotaram suas técnicas de plantio e beneficiamento e foram os responsáveis por sua difusão na África e demais domínios. Chamada “pão dos trópicos” pelo padre José de Anchieta, substituiu por muito tempo o trigo no cotidiano dos colonos e estava entre os mais baratos dos produtos alimentícios. Além de ser uma planta resistente, era um alimento versátil, podendo ser consumido em forma de pão, farinha, ou ainda cozido, assado ou como pudim. A farinha de mandioca era consumida diariamente pelos habitantes da colônia em todas as regiões, acompanhando a mesa dos ricos ou a modesta refeição dos pequenos proprietários, misturadas a caldos ou ao feijão, até ser o alimento principal dos escravos, que nas fazendas contavam com alguns punhados de farinha seca, além de bananas, laranjas e eventualmente pequenas porções de toucinho e feijão.

 

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