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Vacinação contra bexigas

Publicado: Sexta, 15 de Junho de 2018, 15h17 | Última atualização em Quarta, 05 de Mai de 2021, 14h05

Carta do visconde de Anadia a d. Fernando José de Portugal cobrando o cumprimento da vacinação contra a moléstia de bexigas nos domínios ultramarinos. Menciona a experiência do governador de Moçambique no que diz respeito à inoculação, além de outros exemplos como o do capitão do navio cargueiro que vacinava a escravaria e obtinha bons resultados. Por fim solicita a d. Fernando que consiga persuadir os habitantes e que faça da vacinação uma prática na colônia.



Conjunto documental: Capitania do Rio de Janeiro
Notação: caixa 746, pct. 01
Datas-limite: 1700-1808
Título do fundo: Vice-reinado
Código do fundo: D9
Argumento de Pesquisa: Epidemias
Data do documento: 26 de abril de 1804
Local: Palácio de Queluz (Portugal)
Folha(s): 88

 

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

Tendo o príncipe regente nosso senhor ordenado aos governadores e capitães-generais dos seus Domínios Ultramarinos[1] por aviso de 4 de Outubro de 1802, que procurassem introduzir nas suas respectivas capitanias o uso da inoculação das bexigas[2], e dessem conta dos efeitos que produzisse, participou em consequência desta ordem, o atual governador e capitão-general de Moçambique[3], que naquela capital e distritos adjacentes há tanto conhecimento da inoculação e da sua utilidade, que esta prática é muito usual, e que estão os seus habitantes tão familiarizados com ela, que uns aos outros se inoculam, depois do que principiam a sentir as bexigas, mesmo trabalhando sem experimentarem mau efeito, pois que de cem inoculados apenas morre um, e que ultimamente se observou que o capitão de um navio francês inoculou com a vacina[4] duzentos e cinquenta e seis negros, de que constava a carregação, e que só lhe morrera um, e que finalmente todos os carregadores ali inoculam as suas escravaturas, do que tem tirado muita vantagem. A vista deste exemplo, de que Vossa Excelência se pode servir, para inculcar aos habitantes dessa capitania a utilidade da inoculação, espera Sua Alteza Real que V.Exª. os persuada a adaptarem este preservativo de um dos maiores flagelos da humanidade.

Deus guarde a V.Exª. Palácio de Queluz em 26 de abril de 1804

Visconde de Anadia[5]

Sr. Dom Fernando José de Portugal[6]

 

[1] DOMÍNIOS ULTRAMARINOS: ultramar era o termo também utilizado para se referir aos domínios ultramarinos, designava as possessões de além-mar, as terras conquistadas e colonizadas no período da expansão marítima e comercial europeia, ocorrida a partir do século XV. No caso português, as possessões coloniais espalhavam-se pelos continentes africano, americano e asiático, tendo como principais cidades Luanda e Benguela na África, Macau e Malaca na Ásia, e Rio de Janeiro e Salvador na América.

[2] BEXIGA(S): doença infectocontagiosa, causada por vírus, também conhecida como varíola. A varíola não tem cura e foi uma das doenças mais devastadora ao longo da história, até sua erradicação no século XX. No período colonial, as epidemias da doença foram um dos principais fatores de dizimação da população indígena que creditava o contágio à água do batismo usada pelos padres jesuítas. O primeiro grande surto que se tem notícia ocorreu na Bahia em 1562 e 1563, matando milhares de índios Tupinambá e dizimando aldeias inteiras. Além da epidemia que se alastrou entre as décadas de 60 e 80 do século XVI, outros surtos epidêmicos ocorreram no Rio de Janeiro já no século XVII, sendo o mais notável o de 1655 que atingiu, também, Bahia e Pernambuco. Associa-se o desenvolvimento da doença no Brasil ao tráfico atlântico de escravos oriundos da África. Em 1798, realizou-se no Rio de Janeiro a primeira vacinação contra a doença no país, ainda com o método da inoculação do pus da varíola. Somente em 1811, com a criação da Instituição Vacínica, é adotada a vacina jenneriana, com a linfa vacínica, extraída do úbere das vacas. A instituição criada no Rio de Janeiro pelo príncipe regente d. João, como resultado da preocupação com o alastramento da enfermidade, foi entregue aos cuidados e supervisão do intendente-geral da Polícia e do físico-mor do Reino e tinha como alvo principal a população negra cativa. Os escravos vacinados eram mais valorizados para a venda, uma vez que esta era uma doença responsável por grande parte das mortes entre negros. O século XIX também assistiu a grandes epidemias de varíola, sendo notáveis as ocorridas no Ceará, em fins da década de 70, e na cidade do Rio de Janeiro em 1887, quando a doença era responsável por 47% dos óbitos na cidade.

[3] MOÇAMBIQUE: país localizado na costa sudeste da África, banhado pelo oceano Índico. Os primeiros povos a habitarem a região, entre os séculos I e V, eram grupos de língua banta que vieram em ondas migratórias pelo vale do rio Zambeze e fundaram comunidades basicamente agrícolas. Ao longo da Idade Média as cidades pouco se desenvolveram e pouco delas restou. O comércio costeiro foi dominado inicialmente por persas e árabes que tinham assentamentos pelo litoral e mantinham negócios com o Oriente. A viagem de Vasco da Gama levou os primeiros portugueses a região, em 1498; desde então a hegemonia comercial árabe e persa começa a decair e cede lugar às novas rotas marítimas dos portugueses, vindo da Europa até o Oriente, com passagem pelos entrepostos ao longo da costa africana. Os mercadores portugueses se estabeleceram mantendo boas relações com os reinos que dominavam a região, por meio de acordos ou ocasionalmente por meio da força. A primeira povoação fundada na região de Moçambique foi Sena, em 1530, e depois outras ainda no século XVI, tomando conta da rota entre as minas de ouro e o oceano Índico. Entre os séculos XVII e XVIII os portugueses negligenciaram a ocupação dos territórios, mais envolvidos com a colonização da América, mas chegaram a mandar colonos para Moçambique, que se misturaram com os habitantes da região, estreitando os laços de comércio e agricultura. Portugal controlava as ocupações e os negócios da região a partir da capital do Estado da Índia, Goa, mas a administração não era bem sucedida. Em 1752, o governo pombalino decidiu nomear um governador-geral para o território de Moçambique, visando a melhorar as atividades comerciais, coletar os impostos e manter a colônia. Os principais produtos de interesse da metrópole eram o ouro (principalmente nos séculos XVI e XVII), depois o marfim, produto de alto valor na Europa, mas sobretudo escravos, milhares enviados para o trabalho nas Américas até o ano de 1842, quando o tráfico foi oficialmente proibido – sem considerar o comércio clandestino que seguiu ainda alguns anos. Até meados do século XIX, a presença portuguesa limitava-se a algumas capitanias (os chamados prazos), ao longo do litoral, Moçambique só chegou a ser administrada como uma colônia unificada em finais do Oitocentos. Foi a última colônia portuguesa a conseguir a independência, em 1975.

[4] VACINA: o nome vacina advém de vaccinia, agente infeccioso da varíola bovina que, quando inoculado no organismo humano, assegura imunidade à doença, considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a mais devastadora da história. A vacina antivariólica data de 1749, quando era conhecida também como “vacina jenneriana” em razão do nome de seu inventor, o inglês Edward Jenner (1749-1823). Observando os ordenhadores de animais, Jenner constatou que estes adquiriam resistência à varíola após o contato com animais acometidos por cow-pox (pústula da vaca). O método então empregado baseava-se na injeção da pústula da vaca em pessoas sadias, o que causava nestes, erupções próximas às causadas pela varíola. A partir dessas erupções, extraia-se a “linfa” ou “pus variólico”, moendo a crosta da ferida até transformá-la em pó, que era inoculado em outras pessoas, numa cadeia sucessiva de imunização, denominada vacinação “braço a braço”. Tal técnica veio a substituir a antiga prática de “variolização” que consistia na inoculação de formas benignas da doença com objetivo de imunização, levando em muitos casos o indivíduo à morte. A doença foi trazida para o Brasil tanto por portugueses quanto por africanos e a vacina jenneriana foi introduzida em 1804 pelo Marquês de Barbacena. Foram enviados a Lisboa, um médico, a fim de aprender a técnica, e alguns escravos que foram vacinados e passaram a vacina para outras pessoas ao regressarem ao Brasil. Da Bahia, a técnica se estendeu ao Rio de Janeiro, tornando-se uma prática. No entanto, a vacina humanizada foi criticada porque como atingia a corrente sanguínea, transmitia também outras doenças e perdia sua potencialidade. O desenvolvimento da vacina animal, extraída das pústulas de vitelos sadios inoculados com o vírus vacínico, aconteceu no Brasil em 1887 com a criação do Instituto Vacínico Municipal, na rua do Catete, no Rio de Janeiro, que distribuía para as outras províncias. Logo depois, foram criados institutos em São Paulo, Bahia, Ceará, Pará e Pernambuco, diminuindo muito os problemas relacionados as doenças contagiosas. Antes disso, as lâminas e tubos capilares com o pus vacínico eram enviados ao Brasil pela Inglaterra. Porém isso não acontecia todos os meses como deveria e as vacinas mostraram-se enfraquecidas após a quarta ou quinta inoculação, produzindo vacinas nulas. A resistência à vacinação foi uma constante no século XIX, levando algumas câmaras municipais a decretarem a obrigatoriedade desta em épocas de epidemia. A população associava a inoculação à transmissão de doenças como tuberculose, sífilis, erisipela e temia que a vacina animal transmitisse as características e doenças do animal para o homem.

[5] MELO SOTTOMAYOR, JOÃO RODRIGUES DE SÁ E (1755-1809): filho de Aires de Sá e Melo e de d. Maria Antônia de Sá Pereira e Meneses, participou ativamente do cenário político luso-brasileiro. Entre as funções e distinções que possuiu, destacam-se: senhor donatário da vila de Anadia (1787); comendador de São Paulo de Maçãs; alcaide-mor de Campo Maior; membro do conselho da Fazenda e ministro plenipotenciário em Berlim. Em reconhecimento aos serviços prestados pelo seu pai como diplomata e secretário de Estado adjunto do marquês de Pombal e depois secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, d. Maria I concedeu-lhe o título de visconde de Anadia em 1786, sendo agraciado com o título de conde pelo príncipe regente d. João em 1808. Transferiu-se junto com a Corte portuguesa para o Brasil em 1808 e exerceu o cargo de secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos até sua morte em 1809.

[6] CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 2o marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

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