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Providências sobre os órfãos desamparados

Publicado: Quinta, 09 de Agosto de 2018, 18h14 | Última atualização em Segunda, 01 de Março de 2021, 18h51

Consulta à Mesa do Desembargo do Paço por parte do Senado da Câmara de Lisboa a respeito das providências a serem tomadas em relação aos órfãos desamparados, sendo necessário ensiná-los ofícios mecânicos e artes liberais. Solicita edifícios que estejam sem uso onde estes deveriam exercer ofícios que atendessem às necessidades do exército e ofícios de costura. As órfãs que tivessem recebido um dote poderiam se casar com os órfãos que estivessem desempenhando seus ofícios, e assim garantir seu sustento. Porém o Senado não tinha como arcar com essas despesas, tornando-se inviável a criação dos órfãos somente por parte das Casas Pias. O Procurador da Coroa se pronunciou sobre o assunto e alegou que não havia como o Senado sustentar essa ideia, achando melhor a criação dos órfãos em casas de particulares, que receberiam uma ajuda para custear as despesas e educação. Ressalta que era preciso tomar cuidado para que a situação dos órfãos não virasse um caso da Igreja, mas permanecesse na esfera do Estado. O Desembargo do Paço também propunha que a criação dos órfãos ficasse com as casas particulares e sob a responsabilidade de um tutor.

Conjunto documental: Livros de consultas da Mesa do Desembargo do Paço
Notação: códice 250, vol. 2
Datas-limite: 1814-1816
Título de fundo ou coleção: Negócios de Portugal
Código de fundo ou coleção: 59
Argumento de pesquisa: população, órfãos
Data do documento: 24 de outubro de 1814
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 97, 97v e 98

 

Sobre a consulta do Senado da Câmara[1], a respeito das providências que se devem dar aos órfãos desamparados[2], e na qual pareceu ao Senado que tendo só [se] a tratar daqueles órfãos, cujos pais se ignoram, ou não tem de tratar da sua criação, visto que a providência a respeito dos outros está escrita na lei do [8º, 11º do Título 88 do Livro 1º] da Ordenação[3]. Tratando pois daqueles, a sua educação deve começar pelo ensino dos ofícios mecânicos[4], e artes liberais[5], mas para isto, além de rendimentos necessários se pedem estabelecimentos próprios. Estabelecimentos existem não só no Castelo e edifícios feitos para estes destinos que devem ter uso, como também no vasto edifício da Cordoaria[6], além dos pequenos da rua da Rosa, e sua vizinhança como apontam os juízes dos Órfãos[7], e ora estão sem uso, sendo estes últimos ao que parecem mais próprios para o depósito das órfãs.
Que ao Senado pertenceria cuidar na manutenção destes estabelecimentos piedosos e paternais, se estivesse de posse dos avultados rendimentos, que há anos foram desviados de sua administração, como fazem ver os procuradores da cidade, sendo certo que ainda assim mesmo, conforme a experiência mostrasse, se deveria lançar mão de fintas[8] em Lisboa e seu termo para este fim.
Que naqueles edifícios se devem recolher as órfãs destinadas para criadas de servir[9], enquanto não são assoldadadas debaixo das vistas dos seus [juízes] respectivos; empregando-se umas e outras em trabalhos de costura, próprios do seu sexo, e de que precisam os exércitos.
Conhece pois o Senado que aperfeiçoados os órfãos em ofícios e artes liberais, de modo que pudessem reger-se livremente, se deveria tratar no matrimônio de alguns deles como as órfãs a quem se tivesse dado um dote[10] para estabelecerem sua casa, que e havendo assim de se completar um tal estabelecimento os trabalhos dos mesmos órfãos concorreriam para grande parte da sua sustentação; visto que a fazenda[11] do Senado não pode sugerir esta despesa, sem se lhe restituírem os rendimentos que foram desviados da sua administração; ou aliás da finta lembrada na Ordenação do Reino, porém que Sua Alteza Real[12] mandaria o que fosse mais no seu real [agrado].
E dando-se vista ao procurador da Coroa da sobredita consulta e mais papéis a ela juntos, respondeu que os meios que existiam para socorrer os órfãos desamparados eram os que estabeleciam o antigo atual Regimento dos Juízes dos Órfãos[13] que aos desamparados destinava casas particulares onde eles e principalmente as órfãs se acomodassem por soldada, casas de mestres onde aprendessem ofícios, e de lavradores onde trabalhassem, e se exercitassem no serviço da lavoura[14], emprego e ocupação, que era o melhor colégio, e a mais conveniente instituição para granjearem sua vida e serem úteis ao Estado; que entre os meios que havia de socorrer os órfãos desamparados, se podia também contemplar a providência da [Ordem] L. 4º título 102 e ttº 103, para guarda dos órfãos menores manda dar a todos tutor, ou curador sem exceção de ricos ou pobres, e observando-se esta lei, podia o tutor pela entrega que deveria tomar dos órfãos dar-lhe abrigo, e recolhimento em sua casa, como parecia fora antigo costume, enquanto eles ou por falta de idade, ou por não haver quem as quisesse, se não podiam assoldadar, ou meter a ofícios, e podia compensar-se ao tutor a despesa do sustento pelo modo, que o §12 do Regimento mandava compensar às pessoas que criavam órfãos pequenos que sem levarem preço algum por sua criação. Que desta maneira seria muito mais diminuto o número de órfãos destituídos de habitação, sustento e ensino, e só se poderiam contar nesta classe aquelas órfãs, que enquanto se não punham a servir não podiam ter morada em casa de seus tutores e curadores, e aqueles órfãos, que também a não pudessem, ou não devessem ter por algum caso extraordinário.
Que para socorrer os órfãos destituídos de habitação, sustento e ensino, não havia cofre público, como informavam, os papéis juntos, num fundo comum a esse fim geralmente destinado, ainda que existissem alguns bens particulares deixados ou instituídos limitadamente para certo número de órfãos, e outras semelhantes pessoas miseráveis, como nos papéis juntos se referiam existir os do Colégio de Jesus, chamado dos meninos órfãos[15] no sítio da Mouraria[16]; os da Ermida, e Hospital de Nossa Senhora da Vitória, hoje na rua Áurea, e os das meninas órfãs na rua da Rosa das Partilhas. Que nem para socorro destes órfãos desamparados se podia agora lançar mão das rendas do Conselho, ou da finta, e derrama do povo: lembradas na Ordenação, por serem insuficientes as rendas atuais da Câmara, e imprópria dos tempos a finta do povo.
Que também constava dos papéis juntos não haver atualmente lugar público onde se recolhessem as órfãs enquanto se não punham a servir, porque se extinguira ou suspendera a que havia na Casa Pia do Castelo,[17] e parecia que o melhor modo de prover este negócio nesta capital seria instaurar a antiga Casa Pia do Castelo, que a experiência mostrara ser útil, e quando as rendas que antigamente tinha lhe não fossem agora aplicáveis, poderiam aplicar-se as casa, e rendas do mencionado Colégio de Jesus, ou dos Meninos Órfãos da Mourada, as da Ermida, e Hospital de Nossa Senhora da Vitória, hoje na rua Áurea, passando com o encargo de recolher quatro mulheres pobres, e entrevadas, segundo a sua instituição, e a das meninas órfãs, na rua da Rosa das Partilhas, incorporando-se estas casas, e rendas nos estabelecimentos da Casa Pia do Castelo, para serem administradas pela autoridade civil, e política, que tivesse a inspeção da dita Casa Pia, e concedendo-se -lhe mais o subsídio anual de uma loteria.[18]
Parece a Mesa o mesmo que ao procurador da Coroa, por serem as providências que aponta conforme as sábias leis deste Reino, e as mais próprias e adequadas ao objeto de que se trata nas circunstâncias atuais. Lisboa[19] 21 de novembro de 1813.
Sua Alteza Real = No alvará da data desta, dei as providências necessárias sobre esta matéria. Palácio do Rio de Janeiro 24 de outubro de 1814.

 

[1] Peças fundamentais da administração colonial, as câmaras municipais representam o poder local das vilas. Foram criadas em função da necessidade de a Coroa portuguesa controlar e organizar as cidades e vilas que se desenvolviam no Brasil. Por intermédio das câmaras municipais, as cidades se constituíam como cenário e veículo de interlocução com a metrópole nos espaços das relações políticas. Do ponto de vista da administração municipal e da gestão política, foram, durante muitos anos, a única instituição responsável pelo tratamento das questões locais. Desempenhavam desde funções executivas até policiais, em que se destacam resolução de problemas locais de ordem econômica, política e administrativa; gerenciamento dos gastos e rendas da administração pública; promoção de ações judiciais; construção de obras públicas necessárias ao desenvolvimento municipal a exemplo de pontes, ruas, estradas, prédios públicos, etc; criação de regras para o funcionamento do comércio local; conservação dos bens públicos e limpeza urbana. As câmaras municipais eram formadas por três ou quatro vereadores (homens bons), um procurador, dois fiscais (almotacéis), um tesoureiro e um escrivão, sendo presidida por um juiz de fora, ou ordinário empossado pela Coroa. Somente aos homens bons, pessoas influentes, em sua grande maioria proprietários de terras, integrantes da elite colonial, era creditado o direito de se elegerem e votarem para os cargos disponíveis nas câmaras municipais.

[2] Os órfãos desamparados constituíam uma parcela sensível da população do Império português, que preocupava Estado e Coroa, motivando uma série de ações para conter e administrar o problema da infância desvalida. Enquanto os herdeiros de “boas famílias”, com mais ou menos posses, podiam contar com o cofre dos órfãos, rendimentos, tutores e curadores, os órfãos pobres viviam à custa do assistencialismo e da caridade do Estado, da Igreja e de particulares. Quando as Casas de Misericórdia e outras instituições católicas começam a surgir, logo iniciam a prática de recolher os órfãos desamparados e cuidar deles até certa idade ou até que conseguissem uma família que os aceitasse. O princípio da caridade era o motor das ações institucionais e das doações individuais, sendo apropriado pelos homens bons para reafirmar seu poder e influência, de acordo com a moral cristã. A Igreja se ocupava de recolher os desamparados – o termo abandonado passou a ser usado no século XX para se referir à criança sem família deixada à própria sorte – e dar-lhes o primeiro sacramento, o batismo, para que não morressem pagãos. As casas de assistência e caridade encaminhavam, por sua vez, os órfãos às “criadeiras”, amas de leite e parturientes que recebiam um pagamento por amamentar e cuidar dos órfãos até a idade de 7 anos. Essa prática, muitas vezes, apresentava problemas graves: mulheres que recebiam as crianças, mas não tinham condições de amamentá-las; outras que privilegiavam o tratamento dos filhos legítimos, deixando os órfãos à míngua e, ainda, havia as que os tornavam criados desde muito cedo, tratando-os com violência e indiferença. Eram poucas as criadeiras que permaneciam com as crianças depois dos 7 anos, prazo estabelecido pelas instituições religiosas e pelo Estado para que ficassem sob seus cuidados financeiros. Depois desta data, eram deixadas às vezes à própria sorte, contando com a caridade alheia, com uma família que os abrigasse, ainda que, praticamente, como escravos ou com a experiência das ruas, dos que viviam à margem da ordem. As meninas eram mais protegidas pela Igreja para que não se desvirtuassem. Muitas eram encaminhadas para o serviço religioso. Esse “desamparo”, que teve um salto significativo entre fins do século XVIII e início do XIX, passou a preocupar a Coroa e a administração do reino, metrópole e colônias, visto que gerava uma população ociosa infantil, que poderia evoluir e tornar-se perigosa, além de criar adultos improdutivos no futuro. Com a finalidade de controlar e administrar as crianças e os jovens desvalidos e desamparados, o Estado passou o cuidado com os órfãos para as câmaras municipais, que deveriam criar escolas para meninos e meninas pobres, além das que já havia dirigidas pela Igreja Católica e, posteriormente, estabelecer postos de trabalho para que aquela população se tornasse útil ao Estado. Essa mudança não foi muito significativa a princípio, já que os religiosos continuavam a acolher órfãos desamparados e expostos e a maior parte das câmaras pouco fazia pelas crianças, alegando falta de recursos para o estabelecimento de novas escolas e abrigos, mal conseguindo manter os já existentes. Muitos órfãos desamparados continuavam contando com a caridade, outros se tornavam vadios, e havia, ainda, crianças e jovens que eram mandados pelas câmaras para serem criados em alguma família, que era obrigada a aceitá-los, constituindo uma prática chamada adoção compulsória. Essa prática acontecia em Portugal: as câmaras alegavam não ter recursos para construir casas para os órfãos, mas poderiam determinar bons vassalos do reino para serem compulsoriamente tutores de órfãos, obrigados a recebê-los e custeá-los até quando fosse determinado pela vereança.

[3] Trata-se de um conjunto de leis que refletiam o esforço do aparelho do Estado em registrar oficialmente as normas jurídicas vigentes nos diversos reinados, pois a dispersão das leis vigentes e aplicáveis trazia uma inevitável incerteza quanto à sua aplicação e, portanto, prejuízos à vida administrativa, política, econômica e jurídica de Portugal e seus domínios ultramarinos. As ordenações afonsinas, promulgadas por d. Afonso V (1432-1481), constituíram a primeira destas compilações, sendo substituídas pelas ordenações manuelinas (1521) e pelas filipinas (1603), compiladas sob o governo de Felipe I à época da União Ibérica, e vigoraram até 1868 em Portugal.

[4] O termo designa atividades relacionadas com trabalhos manuais. No Brasil colonial, tais ofícios eram considerados inferiores, dada a tradição cultural de valorização do ócio enquanto representação de nobreza, associando-os à escravidão. Com frequência esses ofícios se agruparam em irmandades como os ferralheiros, ferreiros, serralheiros e outros que se reuniram na Irmandade de São Jorge. Era tida como obrigatória tal filiação e, em alguns casos, as irmandades abrigaram a população negra e escravizada, a despeito das interdições decorrentes dos critérios da “limpeza de sangue”. A irmandade vedava em seu primeiro compromisso o acesso de “Judeu, Mouro, negro ou mulato ou de outra infecta nação”, observa Beatriz Catão. Mas, diante da intervenção da Coroa, iria admitir a presença tanto de irmãos proprietários de escravos quanto de forros e cativos, reunidos a partir do ofício exercido (Irmandades, ofícios e cidadania no Rio de Janeiro do século XVIII. IX Congresso Internacional da Brazilian Studies Association (BRASA), 2008. Disponível em http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Beatriz-Catao-Cruz-Santos.pdf). Já os ofícios nobres relacionavam-se às habilidades intelectuais, tais como as letras e as artes. No entanto, ao longo do século XIX, ofícios mecânicos prender-se-iam à ideia de “artes úteis”, permitindo uma aplicação concreta em campos como a guerra, a engenharia, ciências naturais, tipografia, ou seja, na produção de bens ou serviços públicos. Por serem considerados impulsionadores de atividades econômicas, os ofícios mecânicos ganhariam importância. Um exemplo foi a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios por d. João VI em 1816, com o objetivo de formar “homens destinados não só aos empregos públicos da administração do estado, mas também ao progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio de que resulta a subsistência, comodidade e civilização dos povos”. O decreto de criação da escola afirmava fazer-se “necessário aos habitantes o estudo das belas artes com aplicação e preferência aos ofícios mecânicos cuja prática, perfeição e utilidade dependem dos conhecimentos teóricos daquelas artes e difusivas luzes das ciências naturais, físicas e exatas”. As artes mecânicas incluíam ourivesaria, marcenaria e até concepção de inventos e máquinas destinados a melhorar algum aspecto da produção de bens.

[5] No início do século XIX, as chamadas “artes mecânicas” eram as mais difundidas entre a população colonial e popularmente conhecidas por “artes úteis”. Compreendiam atividades ligadas diretamente aos ofícios mecânicos tais como marcenaria, ourivesaria, construção de maquinário para produção de açúcar, entre outros. Após a chegada da família real, em 1808, deu-se início a uma política de valorização e propagação das chamadas “belas-artes” ou “artes liberais”. O novo Estado português nos trópicos passava a incentivar atividades artísticas mais variadas tais como pintura, desenho, escultura, teatro, poesia, música, entre tantas outras. Aconselhado por seu ministro Antônio de Araújo Azevedo, o conde da Barca, um dos homens mais cultos de sua época, d. João contratou um grupo de artistas franceses com o objetivo de organizar uma Escola de Artes e Ofícios em terras brasileiras. A Missão Artística, como ficou conhecida, era liderada por Joachim Lebreton, antigo secretário das Belas-Artes do Instituto da França. A Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios foi criada através de um decreto de agosto de 1816. As medidas da Coroa revelavam, no entanto, um conflito entre os artistas estrangeiros, que desejavam a implementação de uma política estatal de propagação das belas-artes, e os partidários da ideia de que estas “artes de luxo” deveriam se submeter às “artes úteis e necessárias”, necessárias no caso para o desenvolvimento de atividades econômicas ou ao menos de caráter mais prático.

[6] A construção da Real Fábrica da Cordoaria da Junqueira, ou simplesmente Cordoaria Nacional, foi estabelecida em 1771 pelo marquês de Pombal e concluída em 1779. Erguida na freguesia de Belém, em Portugal, de onde partiam as naus portuguesas em direção aos seus domínios ultramarinos, tinha a função de produzir cordas, cabos, velas, bandeiras e alfaiataria destinada à empresa da navegação. No prédio estreito e comprido paralelo ao rio Tejo, atribuído ao arquiteto Reinaldo Manuel dos Santos, funcionavam diversas oficinas que forneciam material aos armadores portugueses, embora a indústria nacional de cordames não fosse suficiente para prover todas as necessidades da frota do Reino, que continuava a importar grandes volumes da indústria de cordoaria holandesa. No final do século XVIII e início do XIX, empreendeu-se um esforço de aumento e racionalização da produção do cânhamo (matéria-prima principal das oficinas) e de pesquisa e descoberta de novos materiais, sobretudo no Brasil, que pudessem ser usados na cordoaria e que dessem bons resultados. Esse incentivo, promovido pela geração ilustrada ligada a Academia Real das Ciências de Lisboa, resultou em algumas descobertas, mas a indústria cordoeira no Brasil não chegou a florescer ao ponto de suprir as importações da metrópole. O prédio da Cordoaria Nacional sofreu alguns graves incêndios e reconstruções, e foi usado para diversos propósitos. Tornou-se Monumento Nacional em 1996.

[7] Autoridade judiciária, tinha a função de zelar pelos órfãos de sua jurisdição e seus bens, inclusive registrando em livro próprio quantos órfãos havia e de que bens dispunham, além de verificar se os mesmos estavam sendo bem geridos. Aos juízes dos órfãos competia uma quantidade enorme de atribuições e atividades, até mais do que aos juízes ordinários e de fora. Entre as competências constam  nomear e confirmar tutores e curadores, prover os órfãos de bens para garantir seu sustento, fazer inventários, avaliar os bens e realizar as partilhas, fazer vender imóveis e arrendar bens de raiz, cuidar para que os rendimentos seguissem para a educação do órfão, conceder cartas de emancipação e licenças de casamento. Eram responsáveis por assegurar com que todos os órfãos tivessem tutor até um mês depois do falecimento do pai ou da mãe, fossem familiares ou não, e por fiscalizar e verificar a idoneidade do tutor ou curador. Se sobre os tutores fosse constatada alguma irregularidade ou má conduta, o juiz deveria destituí-los e obrigá-los a restituir os bens dos órfãos, além de nomear um novo tutor. Era obrigação dos juízes fiscalizar e vigiar os valores que entravam e saíam do cofre dos órfãos e verificar o patrimônio dos tutores, além de fiscalizar o trabalho realizado pelo juiz anterior e denunciá-lo em caso de irregularidades, e arrecadar impostos e taxas para o Juízo. Possuía jurisdição sobre todas as ações cíveis que envolvessem os órfãos, fossem como autores ou réus, até a sua emancipação. Estruturalmente, o juízo dos órfãos era constituído pelo respectivo juiz, pelos escrivães, pelo tutor geral dos órfãos, pelo contador e pelos avaliadores e partidores. Ainda cabia a eles fiscalizar seus oficiais subordinados, escrivão, ajudante de escrivão, oficiais de registro, tesoureiro, contador, avaliador, partidor e porteiro do auditório – considerando que uma mesma pessoa poderia acumular mais de uma função – e prestar contas de tudo o que acontecia sob sua jurisdição ao Provedor, responsável, por sua vez, por fiscalizar as atividades do juiz dos órfãos.

[8] Modalidade de contribuição de melhoria urbana aplicável a obras públicas de bem comum. Constava de um tributo, geralmente cobrado uma vez ao ano, por vezes da população de toda a cidade, ou apenas de algumas regiões para as quais as obras eram específicas. As fintas, segundo as Ordenações Filipinas, eram encargos a serem cobrados apenas pela Coroa para o custeio de obras específicas, como pontes, caminhos, fontes, calçadas, chafarizes e outras obras consideradas “benfeitorias” para a população. Os custos dessas obras deveriam vir da arrecadação do Senado da Câmara (instância municipal), mas como quase sempre os vereadores alegavam que não havia recursos suficientes nos cofres públicos, admitia-se a aprovação, junto ao rei, para lançar uma nova finta que arrecadasse a quantia necessária para as obras. Acontecia, frequentemente, das fintas continuarem a ser cobradas por períodos muito mais longos do que a duração das obras.

[9] A infância desvalida envolvia uma parcela significativa da população infantil do Império português, existindo na metrópole e nas colônias, fruto das mais variadas razões: morte dos pais, doenças graves e invalidantes da criança, que dificultavam e encareciam sua criação, pobreza, abandono dos pais por motivos financeiros, morais ou de comportamento. A maior parte das crianças pobres abandonadas de Portugal e suas colônias acabava indo para as Santas Casas de Misericórdia, instituições filantrópicas ligadas à Igreja e ao Estado, que se encarregavam de receber e dar assistência aos menores até os sete anos de idade, quando perderiam os benefícios e teriam que encontrar uma família que os adotasse, ou conseguir algum trabalho que provesse seu sustento, senão iriam para as ruas. Enquanto a Igreja teve maior influência e ingerência nos negócios do reino, a maior parte dos órfãos era encaminhada para a vida eclesiástica, após receber instrução em colégios e seminários ou conventos. Com o processo de secularização do Estado, a Coroa passou a assumir o cuidado dos órfãos, que deveria ser administrado pelas câmaras municipais, o que não acontecia. A maior parte das crianças continuava sob a tutela da Santa Casa, dos Recolhimentos, dos colégios religiosos e Casas Pias. A intenção do Estado era proporcionar uma vida laica para a grande população órfã pobre, incentivando o casamento, a aprendizagem de ofícios e o trabalho, substituindo o papel exercido pela Igreja durante séculos. A tutela foi o primeiro e principal mecanismo que as famílias mais pobres, principalmente das colônias, que não tinham condições de ter escravos, lançavam mão para conseguir, em troca de moradia e alimentação, quase sempre insuficientes, mão de obra gratuita para ajudar nos afazeres da casa, domésticos, e também nas atividades que garantiam o sustento, desde o trabalho no campo até nas ruas das cidades. A maioria dos meninos era encaminhada para serem aprendizes de ofícios ou marinheiros, enquanto as meninas, para se tornarem criadas domésticas ou “criadas de servir”. Estas eram incentivadas a conseguir casamento e na impossibilidade desses acontecerem, as instituições de cuidado providenciavam a colocação de moças em “casas de família” para servirem como criadas. Durante o período em que estivessem recolhidas, receberiam toda a instrução e formação para serem boas donas de casa, mães e realizarem os trabalhos domésticos, próprios, então, para as mulheres. Havia órfãos que eram dados a famílias que se ofereciam para criá-los, sem registros formais, e também os órfãos que as Santas Casas conseguiam que fossem adotados depois da idade de sete anos, os “filhos de criação”. É desse processo de “pegar para criar” que emerge a referência aos mesmos como “criados” da casa. A política de controle e de disciplinarização do trabalho dos menores órfãos e ociosos intensificou-se ao longo do século XIX, tanto em Portugal, quanto no Brasil, visando à incorporação das crianças e jovens à lógica produtiva dos estados como mão de obra barata no início do processo de industrialização. Somente depois da abolição do regime escravista e da implantação da República, já no século XX, a noção de infância e a especificidade da criança como indivíduo começam a se tornar objeto de estudos, principalmente de pedagogos e psicólogos, e o trabalho infantil passa a ser condenado e combatido, muito embora persista até hoje no Brasil, quase sempre nas mesmas condições dos antigos “filhos de criação” da época colonial.

[10] Prática adotada na colônia desde o início da ocupação e povoamento do território. De acordo com o direito português vigente nos primórdios da colonização, expresso nas Ordenações Manuelinas e Filipinas, o dote tinha dois significados principais para a sociedade, dependendo do ponto de vista dos envolvidos na transação: para os doadores, representava os bens que os pais davam às filhas e às mulheres da família, quando se casavam ou eram recolhidas a um convento, para servir como contribuição para sua manutenção no futuro, considerado uma antecipação da herança a que tinha direito; por outro lado, para os recebedores, eram os bens, no caso do casamento, que as mulheres traziam e podiam ou não, unir aos dos maridos nos contratos de matrimônio. Um tipo de contrato, chamado de “carta a metade”, a comunhão de bens, previa que os bens passavam a ser do casal e deveriam ser divididos entre os herdeiros igualmente, em caso de falecimento de um dos cônjuges. No outro regime dotal, chamado então de “contrato de dote e arras”, semelhante ao regime de separação de bens, a mulher, em caso de viuvez ou separação, mantinha os bens do dote que recebeu para se casar e, quando houvesse, das “arras”, uma espécie de garantia em forma de bens ou dinheiro de que os valores seriam retornados. Esse sistema não era muito frequente no Brasil, mas protegia o dote, este inalienável, que ficava sob a administração do marido, que era obrigado a mantê-lo sem prejuízo. Na sociedade colonial, o dote era considerado um dever, uma obrigação moral dos pais com as filhas, embora não fosse uma obrigação legal, como também era seu dever prover e sustentar os filhos homens. Portanto, os valores dos dotes variavam muito de acordo com os recursos dos pais e os costumes de cada família e região, e podiam ser compostos de valores em moeda, mas eram mais frequentes os bens imóveis como terras e casas, joias e, até mesmo, escravos. Eram certamente determinantes para que as mulheres conseguissem se casar, e influenciavam na escolha do noivo e da família deste. Por vezes, a candidata a noiva não tinha como dote apenas seus bens, ou mesmo não os tinha; a condição social que ela trazia para o casamento poderia ser considerada um dote, já que distinção e nobreza faziam muita diferença em uma sociedade hierarquizada como a colonial, tanto que, por vezes, casamentos desvantajosos em termos de dote eram acertados em virtude da família da noiva e de seu nascimento nobre. A prática destes “casamentos desiguais” não era bem-vista, mas tolerada pela sociedade, já que aconteciam, sobretudo, em locais onde a nobreza estivesse empobrecida. O costume de dotar as filhas avançou até meados do século XIX, embora mais enfraquecido, e foi perdendo lugar e importância, principalmente nas cidades e províncias maiores, à medida que crescia a ideia do casamento afetivo, da individualidade e da diminuição da rigidez da sociedade patriarcal.

[11] Instituição fiscal criada em Portugal, no reinado de d. José I, pelo alvará de 22 de dezembro de 1761, para substituir a Casa dos Contos. Foi o órgão responsável pela administração das finanças e cobrança dos tributos em Portugal e nos domínios ultramarinos. Sua fundação simbolizou o processo de centralização, ocorrido em Portugal sob a égide do marquês de Pombal, que presidiu a instituição como inspetor-geral desde a sua origem até 1777, com o início do reinado mariano. Desde o início, o Erário concentrou toda a arrecadação, anteriormente pulverizada em outras instâncias, padronizando os procedimentos relativos à atividade e serviu, em última instância, para diminuir os poderes do antigo Conselho Ultramarino. Este processo de centralização administrativa integrava a política modernizadora do ministro, cujo objetivo central era a recuperação da economia portuguesa e a reafirmação do Estado como entidade política autônoma, inclusive em relação à Igreja. No âmbito fiscal, a racionalização dos procedimentos incluiu também novos métodos de contabilidade, permitindo um controle mais rápido e eficaz das despesas e da receita. O órgão era dirigido por um presidente, que também atuava como inspetor-geral, e compunha-se de um tesoureiro mor, três tesoureiros-gerais, um escrivão e os contadores responsáveis por uma das quatro contadorias: a da Corte e da província da Estremadura; das demais províncias e Ilhas da Madeira; da África Ocidental, do Estado do Maranhão e o território sob jurisdição da Relação da Bahia e a última contadoria que compreendia a área do Rio de Janeiro, a África Oriental e Ásia. Por ordem de d. José I, em carta datada de 18 de março de 1767, o Erário Régio foi instalado no Rio de Janeiro com o envio de funcionários instruídos para implantar o novo método fiscal na administração e arrecadação da Real Fazenda. Ao longo da segunda metade do século XVIII, seriam instaladas também Juntas de Fazenda na colônia, subordinadas ao Erário e responsáveis pela arrecadação nas capitanias. A invasão napoleônica desarticulou a sede do Erário Régio em Lisboa. Portanto, com a transferência da Corte para o Brasil, o príncipe regente, pelo alvará de 28 de junho de 1808, deu regulamento próprio ao Erário Régio no Brasil, contemplando as peculiaridades de sua nova sede. Em 1820, as duas contadorias com funções ultramarinas foram fundidas numa só: a Contadoria Geral do Rio de Janeiro e da Bahia. A nova sede do Tesouro Real funcionou no Rio de Janeiro até o retorno de d. João VI para Portugal, em 1821.

[12] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[13] Os regimentos eram conjuntos de normas publicadas em forma de leis que regiam o funcionamento de uma instituição e as funções e atribuições de cada oficial que fazia parte de certa jurisdição. Eram periodicamente atualizados, de acordo com as mudanças havidas nas obrigações de cada cargo ou lugar. Os regimentos dos juízes dos órfãos começaram a aparecer com esta denominação a partir das primeiras ordenações, de d. Afonso V em 1448, que deram início às grandes compilações das leis de Portugal. No entanto, o lugar de juiz de órfãos existia pelo menos desde o reinado de d. Afonso II, no século XII. As leis e disposições sobre os órfãos e sobre os oficiais encarregados de seus negócios e cuidados foram atualizadas no século XIV, de acordo com o Livro das Leis e Posturas, e aumentadas e melhoradas ao longo das compilações seguintes, como as Ordenações de d. Duarte, de inícios do século XV, as Leis Extravagantes, de 1569 – onde podemos identificar um primeiro regimento mais completo sobre o Juízo dos Órfãos –, até a publicação do Código Filipino em 1603, que organizou a matéria e ficou em vigor até o século XIX, com algumas mudanças mais significativas em 1757-1759 e em 1815.

[14] A agricultura surge no início da colonização da América portuguesa para melhor aproveitar as terras descobertas, como uma solução para a necessidade de ocupar, povoar e fazer produzir a colônia, quando se acreditava que as novas terras não eram promissoras em metais preciosos. Inicialmente tentou-se ajustá-las para a produção de gêneros europeus importados por Portugal; com o passar do tempo percebeu-se que alguns produtos não se adaptariam ao terreno e ao o clima, adotando-se o uso de produtos tropicais já cultivados pelos índios, ou outros produtos com grande valor comercial. A cana-de-açúcar foi o primeiro e o mais duradouro destes gêneros produzidos para a exportação. A agricultura colonial era apoiada no trabalho escravo, utilizava grandes áreas territoriais e tendia a se focar na exploração em massa de um gênero: o tripé escravidão, latifúndio e monocultura. No entanto, não se pode limitar o entendimento da lavoura na colônia a estas bases. Era comum a existência de grandes fazendas com lavouras não voltadas para o mercado externo. Como as técnicas de produção eram muito rudimentares (durante todo o período colonial e grande parte do Império), verificando-se a ausência do uso do arado, da adubação e do descanso das terras, grandes extensões de terreno eram necessárias para o plantio, além das necessidades habituais decorrentes do aumento da produção e do comércio. Quanto ao caráter de monocultura, embora se reconheça que as grandes lavouras produziam principalmente um produto para a exportação, sabe-se também que quase todas elas mantinham em seus terrenos, áreas consideráveis dedicadas a gêneros para consumo interno ou para abastecimento. Havia, em paralelo a esta grande plantação, pequenas propriedades produtoras de gêneros para o mercado interno que exerciam um papel complementar, suprindo a colônia. Sustentadas no trabalho familiar e na produção de mais de um gênero, essas lavouras foram responsáveis pela ocupação inicial do interior, o chamado sertão , para onde partiam os lavradores e suas famílias, em busca de solo mais fértil, haja vista que dentro ou nas franjas das grandes propriedades, somente ocupavam terras devolutas ou pobres. Por todo o período colonial, a grande lavoura mais lucrativa foi de cana-de-açúcar, seguida pelo tabaco, valoroso como moeda de troca por escravos na África, e pelo algodão, que ganhou importância depois do século XVIII, quando cresceu a demanda da indústria têxtil inglesa. Durante o período "áureo" da mineração, a agricultura, de forma geral, passou por reformulações: muitos escravos e braços utilizados na terra foram desviados para a extração de minérios; a receita gerada pela lavoura foi suplantada pelos vultosos e rápidos lucros obtidos com o ouro e os diamantes, colocando-a, de certa forma, em segundo lugar nas atenções da Coroa; e a lavoura de abastecimento cresceu em importância. Diversas famílias de agricultores pobres que se dedicavam à pequena lavoura de abastecimento lançaram-se à aventura do ouro, em busca de enriquecimento fácil, e devido à consequente diminuição na produção de alimentos, a fome e a carestia tomaram conta não somente do distrito aurífero, mas de boa parte da colônia. Até mesmo a escravos era possível desenvolver pequenas roças para subsistência e abastecimento, o que parte da historiografia brasileira sobre a colônia considera como a origem da "brecha camponesa", temática bastante debatida a partir dos anos 1960. A partir de meados do século XVIII, no âmbito da política fomentista da administração pombalina, começou-se a investir mais em estudos científicos para a melhoria das técnicas agrícolas, visando o aumento da produtividade e da produção. A agricultura passou a ser vista como uma arte, um exemplo da capacidade do homem interagir com seu ambiente e transformá-lo em seu benefício. E segundo este mesmo pensamento inspirado na fisiocracia, de grande influência no meio ilustrado luso- brasileiro, passou também a ser encarada como a grande fonte de riqueza do Estado, para onde deveriam se voltar todos os esforços, científicos e práticos.

[15] Instituições fundadas e administradas pela Companhia de Jesus, que começaram a ser criados no século XVI, tanto em Portugal quanto no Brasil, para fornecer ensino de caráter humanista e religioso, funcionando como escola comum e seminário, e no caso brasileiro, ainda oferecendo catequese e conversão dos índios à fé católica, além do ensino da língua e dos costumes dos brancos. Aceitavam tanto meninos de boas famílias, filhos da elite colonial, brancos ou mestiços, que buscavam a instrução que possibilitaria seu ingresso nas universidades europeias, quanto meninos órfãos e pobres desamparados, que recebiam moradia, alimentação, educação e eram frequentemente encaminhados para o serviço religioso. A instituição escolar jesuíta reinou quase soberana durante o período colonial, e apesar de outras ordens também administrarem colégios e seminários, o ensino inaciano prevaleceu e disseminou-se pelo Brasil. Em 1759, com a expulsão da Companhia de Jesus de toda a extensão do Império português, as antigas escolas e instalações de seminários transferiram-se para o patrimônio do Estado, que passou a se responsabilizar pela tarefa de educar e prestar auxílio aos menores órfãos. A partir desse momento, a orientação da Coroa era de que as escolas ministrassem ensino laico, ainda que cristão, mas de caráter mais pragmático e voltado para a formação profissional e do súdito “útil” ao Império, principalmente no caso dos rapazes. As escolas para meninas órfãs eram mais rígidas na proteção e controle das moças, mantendo o princípio moral religioso de preservar sua “honra” e prepará-las para o casamento, sempre que possível, e para o desempenho das tarefas domésticas. Essas habilidades poderiam assegurar às jovens que não se casassem trabalho como criadas nos lares em Portugal, possibilidade praticamente inexistente para as órfãs do Brasil, já que quem desempenhava as tarefas domésticas na maior parte das casas dos mais abastados eram as escravas. Em geral, as três ocupações mais frequentes para os meninos órfãos e pobres eram os ofícios mecânicos, os tratos marítimos e o sacerdócio. Embora desencorajado pelo Estado, que preferia trabalhadores em vez de padres, essa terceira opção continuava a ser uma alternativa viável, considerando-se que muitas escolas ainda eram regidas por religiosos de diversas ordens. As escolas de ofícios mecânicos desenvolveram-se pouco na metrópole, restando à maioria dos órfãos a Marinha ou os serviços nas guardas, onde teriam uma vida de privações, muito trabalho e maus tratos.

[16] Bairro no arrabalde do centro da cidade de Lisboa, no entorno da colina em cujo topo se encontra o Castelo de São Jorge. Deve seu nome aos muçulmanos que foram para lá empurrados pelas tropas cristãs de d. Afonso Henriques, que reconquistou o território lisboeta da dominação moura em 1170 e designou a montanha e seu entorno como refúgio de habitação da população conquistada. A presença desses grupos levou ao desenvolvimento de um tipo de arte e de arquitetura únicas, a arte mudéjar, uma mistura de estilos árabes e portugueses, que evoluíram no que se costuma chamar de estilo manuelino. Foi durante muito tempo um bairro decadente, habitado por população “indesejada”, formada, a princípio, por diferenças religiosas entre cristãos e muçulmanos, mas depois substituída por populares e imigrantes, e continuou durante muito tempo associado ao lugar onde vivem os párias e enjeitados da sociedade. A ausência de políticas públicas e o abandono do Estado levaram à ruína diversas construções, mas também acabaram por favorecer a existência, ainda hoje, dos prédios históricos antigos, atualmente em processo de revitalização.

[17] “Para asilo da pobreza, para desterro da mendicidade, cancro que há longos anos rói e devora os estados da Europa, cria no Castelo de S. Jorge uma Casa Pia, onde também a mocidade é instruída nos elementos das ciências e das belas artes, e donde saíram depois muitos moços de talentos, que foram brilhar em Coimbra”. Assim definia José Bonifácio a criação da Casa Pia de Lisboa, instalada no Castelo de São Jorge em 1780, por iniciativa de Diogo Inácio Pina Manique, intendente geral de Polícia do Reino, desembargador do Paço, administrador da Fazenda de Lisboa e feitor-mor de todas as alfândegas portuguesas (entre outros cargos que acumulava). Inicialmente, Pina Manique pretendia estabelecer uma casa para recolhimento de mendigos, mas logo passou a recolher também os órfãos que vagavam pela cidade. O que começou como um projeto particular de Manique se tornou oficial, quando d. Maria I tomou sob sua proteção o estabelecimento em 1782. Dentro do Castelo, várias “instituições” funcionavam paralelamente, todas como parte do mesmo projeto. Havia uma oficina na qual os mestres ensinavam a fabricar lonas, tecidos e fiações diversas; casas de correção (para ambos os sexos); casas para que os “corrigidos” aprendessem os deveres civis e religiosos; a casa de Santa Isabel para meninas órfãs; a casa de Santo Antônio, para órfãos menores, que aprenderiam as primeiras letras; o Colégio São José, para órfãos ainda dependentes; um colégio onde se ensinava alemão e escrituração mercantil; o Colégio de São Lucas, onde se tinham aulas de farmácia, de desenho, gramática latina, anatomia, línguas inglesa e francesa, e princípios de matemática (os melhores alunos formados neste colégio seguiriam para a Academia da Marinha, as Aulas de Comércio e Aulas Régias, de Filosofia e Grego); e, por fim, aulas de obstetrícia, para homens e mulheres separadamente. Houve mesmo ramificações desta Casa Pia em lugares como Coimbra, Edimburgo, na Dinamarca e em Roma, que ensinavam ciências naturais, medicina e obstetrícia, e belas artes. A Casa Pia foi extinta em 1807, após o início das invasões francesas em Portugal, quando o castelo foi tomado e os “alunos” convocados para lutar nas guerras. Foi retomada em 1814 no Mosteiro do Desterro, desta vez sob o controle do Senado da Câmara, por imperiosa necessidade, haja vista o grande número de órfãos e desamparados gerados pelas guerras napoleônicas.

[18] Usualmente conhecida como jogo de azar, por meio de bilhetes numerados ou frações destes com o fim de se obterem prêmios pecuniários que são indicados por sorteios. Sua criação em Portugal data do final do século XVII, quando já estava instituída em alguns países da Europa. As loterias foram criadas com o objetivo de arrecadar receita para operações financeiras, principalmente visando reformar a moeda e fazer circular o dinheiro existente no Reino. D. Pedro II, rei de Portugal de 1683 a 1706, em carta régia datada de 4 de maio de 1688, criou a primeira loteria portuguesa, chamada loteria real. Em 1805, o príncipe regente d. João VI decreta a mudança de definição de loteria real para loteria nacional. Ao estado cabia a prerrogativa de autorizar a realização de loterias, em geral concedida a instituições beneficentes e científicas. Um dos destinos dos recursos obtidos com tais loterias foi a Academia Real das Ciências de Lisboa, instituição científica criada em 1779. O 1º duque de Lafões, seu sócio-fundador, foi o responsável por ser destinada à academia, por diversas vezes, parte das receitas das loterias, principalmente após 1799, quando o príncipe d. João VI arbitrou à instituição 4.800.000 réis anualmente.

[19] Capital de Portugal, sua origem como núcleo populacional é bastante controversa. Sobre sua fundação, na época da dominação romana na Península Ibérica, sobrevive a narrativa mitológica feita por Ulisses, na Odisseia de Homero, que teria fundado, em frente ao estuário do Tejo, a cidade de Olissipo – como os fenícios designavam a cidade e o seu maravilhoso rio de auríferas areias. Durante séculos, Lisboa foi romana, muçulmana, cristã. Após a guerra de Reconquista e a formação do Estado português, inicia-se, no século XV, a expansão marítima lusitana e, a partir de então, Portugal cria núcleos urbanos em seu império, enquanto a maioria das cidades portuguesas era ainda muito acanhada. O maior núcleo era Lisboa, de onde partiram importantes expedições à época dos Descobrimentos, como a de Vasco da Gama em 1497. A partir desse período, Lisboa conheceu um grande crescimento econômico, transformando-se no centro dos negócios lusos. Como assinala Renata Araújo em texto publicado no site O Arquivo Nacional e a história luso-brasileira (http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3178&Itemid=330), existem dois momentos fundadores na história da cidade: o período manuelino e a reconstrução pombalina da cidade após o terremoto de 1755. No primeiro, a expansão iniciada nos quinhentos leva a uma nova fase do desenvolvimento urbano, beneficiando as cidades portuárias que participam do comércio, enquanto são elas mesmas influenciadas pelo contato com o Novo Mundo, pelas imagens, construções, materiais, que vinham de vários pontos do Império. A própria transformação de Portugal em potência naval e comercial provoca, em 1506, a mudança dos paços reais da Alcáçova de Lisboa por um palácio com traços renascentistas, de onde se podia ver o Tejo. O historiador português José Hermano Saraiva explica que o lugar escolhido como “lar da nova monarquia” havia sido o dos armazéns da Casa da Mina, reservados então ao algodão, malagueta e marfim que vinham da costa da Guiné. Em 1º de novembro de 1755, a cidade foi destruída por um grande terremoto, com a perda de dez mil edifícios, incêndios e morte de muitos habitantes entre as camadas mais populares. Caberia ao marquês de Pombal encetar a obra que reconstruiu parte da cidade, a partir do plano dos arquitetos portugueses Eugenio dos Santos e Manuel da Maia. O traçado obedecia aos preceitos racionalistas, com sua planta geométrica, retilínea e a uniformidade das construções. O Terreiro do Paço ganharia a denominação de Praça do Comércio, signo da nova capital do reino. A tarde de 27 de novembro de 1807 sinaliza um outro momento de inflexão na história da cidade, quando, sob a ameaça da invasão das tropas napoleônicas, se dá o embarque da família real rumo à sua colônia na América, partindo no dia 29 sob a proteção da esquadra britânica e deixando, segundo relatos, a população aturdida e desesperada, bagagens amontoadas à beira do Tejo, casas fechadas, como destacam os historiadores Lúcia Bastos e Guilherme Neves (Alegrias e infortúnios dos súditos luso-europeus e americanos: a transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1807. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, nº1, p.29-46, jan./jun. 2008. http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/86/86). No dia 30 daquele mês, o general Junot tomaria Lisboa, só libertada no ano seguinte mediante intervenção inglesa.

 

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