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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Quinta, 09 de Agosto de 2018, 18h08
Órfãos e expostos no império luso-brasileiro

Renato Franco
Professor do departamento de História da UFF

 

Órfãos

Quando a Coroa portuguesa chegou ao território que viria se chamar Brasil, havia relativamente pouco tempo que a monarquia reunira um conjunto de leis esparsas em um compêndio que organizaria a legislação do recém-criado Reino de Portugal. Divididas em cinco volumes, as Ordenações afonsinas (1446) devem ser compreendidas dentro de um contexto de revalorização do direito romano pelo Ocidente, bem como pelo esforço de organização jurídico-institucional vivenciado a partir da elevação da Casa de Avis à condição de cabeça da monarquia portuguesa, em 1385. Receberam o nome de afonsinas, porque foram compiladas durante o reinado de d. Afonso (1432-1481), e deveriam orientar a aplicação do direito canônico e do direito romano no reino português. 

De acordo com o Direito das sociedades que surgiam no alvorecer da época moderna, a célula fundamental era composta pela família, e a maior importância era garantida aos homens de pleno poder de ação. Aqueles considerados desprovidos das capacidades intelectuais - a inteligência, a razão e a prudência - constituíam grupos de humanidade diminuída. Nesse esquema mental, mulheres, crianças, velhos e dementes eram portadores de uma humanidade inferior. Por isso, a morte de um familiar, especialmente o pater familias, poderia introduzir uma alteração sensível nas condições de sobrevivência de crianças e jovens. Partindo do princípio de que a família era o núcleo fundamental, nos casamentos legítimos, ou seja, sacramentados diante da Igreja Católica, a morte de um dos progenitores garantia ao outro membro do casal a tutela ou, em suma, o direito de gerir toda a herança dos filhos menores de 25 anos.

Entre os filhos ditos naturais - frutos de relações tidas fora do casamento -, a situação era mais complicada. Quando a ascendência paterna era desconhecida, a morte da mãe poderia legar ao filho o estatuto de órfão. Entretanto, quando os progenitores eram conhecidos, os filhos "naturais" ou "ilegítimos" não estavam impossibilitados de herdarem os bens do pai. (Ordenações afonsinas, livro 4, título 98; Ordenações manuelinas, livro 4, título 81; Ordenações filipinas, livro 4, título 92).[1] De todo modo, tanto a menoridade quanto a incapacidade de se defenderem faziam dos órfãos um segmento particularmente frágil, cabendo ao rei, caso os laços familiares dos menores não fossem eficazes, tutelá-los por meio de funcionários.

Um exemplo interessante da longevidade das percepções morais sobre a condição de inferioridade feminina e a importância do casamento legítimo pode ser encontrado em um caso do início do século XIX, acontecido no Rio de Janeiro. Em 1814, Joana Rosa, mãe natural dos filhos tidos com Francisco da Cunha e Menezes, solicitou a tutoria dos bens dos descendentes menores. Apesar de Joana Rosa e Cunha e Menezes nunca terem se casado, o nobre português, que havia sido governador da Índia, legou aos filhos uma significativa quantia. Uma das filhas daquela união "ilegítima", Maria da Glória Cunha Menezes, casara-se com o barão de Manique, que, por ser nobre, assumiu a tutoria dos irmãos de sua esposa. Sob a alegação de que a tutoria da mãe, Joana Rosa, feriria o decoro esperado, a Mesa do Desembargo do Paço recomendou que o barão de Manique permanecesse como responsável pelos bens dos irmãos menores da esposa.[2]

O temor de que as riquezas dos órfãos se dissipassem pela malversação dos bens estava no cerne da justificativa encontrada pelas Ordenações afonsinas. Logo ao tratarem do tema, afirmavam que, em Portugal, muitos órfãos eram "lançados em perdição", arruinando, por falta de um tutor, todo o patrimônio que lhes era legado. Mas o rei, seguindo os preceitos morais de seu estado, como cabeça do corpo político, deixava claro que tinha grande preocupação com a guarda dos órfãos, pois "uma das coisas que são encomendadas ao Rei na sua terra, assim é guardar e manter e defender esses órfãos." (Ordenações afonsinas, livro 4, título 83) Assim, até os 25 anos todos eram considerados menores e dependiam de um tutor que gerisse sua herança.[3]

Ainda segundo o Código afonsino, a nomeação de um tutor ou "guardador" era possível em três casos: primeiro, quando, no testamento, o pai ou a mãe faziam a nomeação direta; segundo, quando, na ausência de um testamento que nomeasse um tutor, parentes próximos aceitavam a função; e, por último, quando, na falta de testamenteiros e/ou parentes disponíveis, a tutela dos bens dos menores dizia respeito ao juiz de órfãos, também encarregado de colocar os menores em casas de tutores. (Ordenações afonsinas, livro 4, título 82).

Desde as Ordenações afonsinas havia referências ao chamado juiz de órfãos, encarregado de controlar as fortunas que estavam sob a administração de um tutor: "Tanto que o juiz dos órfãos souber que em essa Vila ou Lugar há algum órfão sem tutor, ou curador, deve logo sem outra alguma prolonga encaminhar, como lhe seja dado tutor, ou curador" (Ordenações afonsinas, livro 4, título 87). Uma vez por ano, o juiz, o contador e o escrivão de cada localidade deveriam analisar as contas dos tutores ou curadores dos órfãos, verificando, a partir do inventário, se havia ou não boa administração dos bens. Em Lisboa, competia ao chanceler da Casa do Cível presidir ao processo de contas, assistido pelo escrivão e contador dos órfãos. Em todas as localidades, juízes ordinários ou especiais dos órfãos deveriam ter "um livro" guardado na "arca da cidade ou vila", contendo o inventário de todos os bens dos menores (Ordenações afonsinas, livro 1, título 33).

A partir das Ordenações manuelinas (1514), a ocupação de juiz de fora tornou-se obrigatória em todas as localidades com mais de "400 vizinhos"; onde não houvesse "os Juízes ordinários do dito Lugar servirão o dito ofício de juiz dos órfãos com os tabeliães da dita Vila" (ver Ordenações manuelinas, livro I, título 57; prossegue nos mesmos termos em Ordenações filipinas, livro I, título 88). Tratava-se de uma função provida pelo rei durante três anos, de jurisdição camarária; o ocupante deveria ter idade mínima de 30 anos. O juiz dos órfãos deveria cuidar dos menores, de seus bens e suas rendas. Para tanto, deveria organizar, junto com o escrivão, uma relação em que constasse o nome de cada órfão, filiação, idade, local de moradia, nome do tutor, bem como o inventário dos bens, zelando pelo depósito integral de todas as quantias em uma arca (ou cofre), que, por sua vez, ficaria sob a responsabilidade de uma pessoa de grande consideração na localidade. Além de valores monetários, deveriam constar na referida arca dois livros - "um para receita, outro para despesa do dinheiro que se houver de meter e tirar dela" - que deveriam ser assinados pelo provedor da comarca e só poderiam ser retirados quando fosse necessário fazer alguma anotação.

A necessidade de expansão desse modelo normativo para todo o império português pode ser constatada no empenho régio em criar, na Bahia, por meio de um alvará de 1612, o cargo de juiz de órfãos, com seu respectivo cofre, em que fosse possível guardar o dinheiro herdado e os lucros que porventura fossem auferidos de bens de raiz. Naquela sociedade marcadamente rural e escravista do início do século XVII, o engrandecimento da riqueza estava diretamente ligado à posse de escravos e à manutenção dos engenhos; por isso, "quando os órfãos tivessem alguns engenhos, ou partidos se lhes não vendam os escravos, bois, móvel mais fábrica necessária para serviço e cultura dos tais partidos e engenhos".

A preocupação em conservar os bens dos órfãos, posta desde as Ordenações afonsinas, foi retomada no alvará de 1612, em que o monarca terminantemente proibiu a governadores, ministros da justiça e da Fazenda régia, tomarem dinheiro emprestado do cofre.[4] Não era uma preocupação infundada, porque, de diferentes maneiras, era possível constatar a alegação de pouco cuidado com as heranças dos órfãos, diante da falta de controle sobre os tutores.[5]

Em boa medida, as soluções para os órfãos eram encontradas nas redes de parentesco (avós, tios, irmãos mais velhos ou padrinhos). Quando esses laços se mostravam ineficazes, restava ao juiz de órfãos cuidar da inserção das crianças e dos jovens. A bem da verdade, a legislação protegia os herdeiros, deixando a descoberto os órfãos que não possuíam qualquer tipo de resguardo financeiro quando os pais pobres faleciam. Assim, nas comunidades locais, a recolocação de órfãos em outras famílias poderia significar um interessante estoque de mão de obra disponível, porque o dever de educação dos tutores não lhes interditava a possibilidade de utilização da mão de obra. Além dessas soluções comunitárias e pessoalizadas que, certamente, davam o tom geral na maior parte dos casos, a partir do século XVI era possível observar, à semelhança do que vinha acontecendo em outras partes do Ocidente, o esforço no sentido de criar instituições que pudessem acolher órfãos, cumprindo o imperativo da caridade e, ao mesmo tempo, garantindo o controle progressivo de parcelas da população.

Em 1549, foi fundado, por d. João III, o Colégio de Jesus dos Meninos Órfãos de Lisboa que, educados na sede do império, acabariam se tornando personagens importantes nas missões religiosas no Brasil; em 1649, foi fundado, em Évora, o Colégio dos Inocentes; em 1651, o Colégio Nossa Senhora da Graça, no Porto; em 1667, por meio de uma reorganização, foram reformados os estatutos do Colégio dos Meninos Órfãos, de Vila Viçosa. Mais importante do que estabelecer uma cronologia de institucionalização é, para fins deste texto, ressaltar o caráter altamente seletivo de boa parte dos colégios e recolhimentos. Em suma, no cômputo geral, apesar de fundamentais, esses estabelecimentos que acolhiam os órfãos tinham um escopo de atendimento reduzido, preferindo os cristãos-velhos e legítimos e secundarizando ilegítimos e impuros de sangue. No caso colonial, os recolhimentos de órfãs geridos pela Misericórdia de Salvador e do Rio de Janeiro caracterizaram-se também pela refração aos descendentes de africanos.

Logo que chegaram à América, ainda na década de 1550, os jesuítas juntamente com sete órfãos de Lisboa deram início ao Colégio dos Meninos de Jesus, na Bahia. Em 1553, chegaram moças órfãs para se casarem na terra recém-conquistada. Parte dos órfãos poderia ser enviada para as regiões coloniais, a fim de se tornarem úteis a si e ao Estado. Dentro dessa perspectiva podem ser compreendidas as ações utilitaristas dadas aos órfãos, obrigando-os aos serviços militares, por exemplo. Para a América portuguesa, até o início do século XVIII, desconhecem-se instituições de grande envergadura que acolhessem meninos e meninas órfãs nos moldes do reino. Ao que tudo indica, a criação desses menores órfãos permaneceu no círculo comunitário e, quando muito, resguardada legalmente pelo juiz de órfãos local.
 

Expostos
Os expostos ou enjeitados constituem uma categoria completamente diferente dos órfãos, tanto do ponto de vista jurídico, quanto do ponto de vista assistencial, ainda que, no último caso, os destinos desses dois grupos pudessem se aproximar, em certos aspectos, especialmente a partir da segunda metade do século XVIII. Chamavam-se enjeitadas ou expostas as crianças recém-nascidas, anonimamente abandonadas pelos pais, que, assim, abriam mão da tutela e da criação dos filhos. Diferentemente dos órfãos, para quem a morte dos progenitores era uma referência incontornável, a criança exposta era considerada em seu grau zero de ascendência, portanto, por definição, livre.[6]

A prática de se abandonar filhos é imemorial e pode ser observada em diferentes épocas da humanidade, da Antiguidade clássica à atualidade. No Ocidente, ao longo da Idade Média, o cristianismo motivou o surgimento de pequenos estabelecimentos, ancorados no ideal de ajuda ao próximo. Foi também durante esse período que apareceram instituições acolhedoras que utilizavam uma roda em um torno móvel que fazia o contato entre o interior e o exterior dos estabelecimentos de caridade. Assim, a mãe manteria o anonimato e a criança teria maiores chances de sobrevivência. Esse modelo de acolhimento de recém-nascidos foi conseguindo cada vez mais adeptos na Europa, sobretudo, católica, a partir do século XVI.

Em Portugal, apesar de se ter instituições destinadas ao acolhimento de expostos ao longo da Idade Média, a primeira referência legal foram as Ordenações manuelinas (livro I, título 67, parágrafo 10) prescrevendo que recaísse sobre os municípios a obrigação de financiarem, até os sete anos de idade, a criação dos enjeitados nascidos sob sua jurisdição. Esse item permaneceu na Legislação filipina, acrescentando somente a autonomia de a municipalidade lançar fintas sobre população caso não dispusesse de rendas: "não tendo rendas por que se possam criar, os oficiais da câmara lançarão finta pelas pessoas que nas fintas e encarregos do concelho hão de pagar". (Ordenações filipinas, livro 1, título 88, parágrafo 11). A legislação referida foi base da assistência oferecida à infância abandonada e vigorou sem grandes modificações até o primeiro terço do século XIX.          

Como as razões para o abandono eram múltiplas (pobreza, honra, desestruturação familiar, ou simples desconsideração pela criança), eventualmente poderia haver órfãos entre os enjeitados, mas não é possível determinar quais eram os grupos majoritários, inclusive porque as razões variavam caso a caso, a depender do espaço e do tempo. O abandono era uma prática utilizada por parcelas consideráveis da população, por diferentes motivos, e que tinha apoio tácito da legislação e o silêncio da comunidade. Em pequenos logradouros, por exemplo, não era raro haver taxas substanciais de expostos, que permaneciam anônimos, sem quaisquer denunciações.

Progressivamente a partir do século XVI, o auxílio às crianças abandonadas foi sendo feito pelas irmandades da Misericórdia em parceria com as câmaras locais. Embora fosse um dever legal das câmaras, as Misericórdias mais proeminentes fizeram acordos, mediante o pagamento regular das municipalidades, e passaram a administrar o acolhimento, a batizar, a registrar e a encaminhar as crianças para as amas de leite contratadas. Em caso de falecimento, encarregavam-se de vestir a criança e enterrá-la num campo santo. A ampla rede de serviços oferecidos por algumas Santas Casas, seus consideráveis quadros de servidores (cirurgiões, capelães, tesoureiro, entre outros) frequentemente foram incentivadores de contratos promovidos com as câmaras. Muitos contratos eram estabelecidos de forma tácita e outros feitos oficialmente, como os de Lisboa (1635), Porto (1688), Coimbra (1708).

A partir do modelo português, surgiram também na América alguns estabelecimentos de acolhimento. Foi somente em fins do século XVII que as principais municipalidades começaram a aventar possibilidades de fornecer um auxílio sistematizado aos expostos. Em 1693, a Coroa enviou uma carta à câmara do Rio de Janeiro ordenando que se tomasse uma providência porque haviam muitas crianças encontradas mortas nas praias e ruas da cidade. Em 1694, a câmara começou o pagamento sistematizado aos criadores de expostos. Uma das principais motivações para o acolhimento das crianças era evitar a prática, altamente recriminada, de deixá-las morrer sem batismo.[7] Por isso, todas as instituições que as acolhiam não tardavam em batizá-las.

O abandono não era entendido como um sinal de barbárie, pelo contrário, era até, em certo sentido, como já dito, incentivado pela legislação, pois era uma forma de evitar o aborto e o infanticídio, ambos durante recriminados. Quando uma pessoa deixava uma criança na roda, ela não deveria ser perguntada sobre a procedência do enjeitado. Cabia aos pais, caso quisessem reaver seus filhos, deixar sinais, bilhetes, objetos que pudessem identificar a criança. O enjeitamento era entendido como um mal menor e servia a uma visão bem disseminada na época: se era uma maldade abandonar os filhos, era um bem enorme acolher as crianças.

Mesmo que apresentassem um discurso semelhante de amor ao próximo, as diversas formas de acolhimento das crianças diferenciavam também a dinâmica do abandono. Como eram deixadas à mercê de pessoas dispostas a acolhê-las, as crianças deveriam ser abandonadas em locais públicos. A partir desse princípio, basicamente, há quatro cenários possíveis em relação ao financiamento dos enjeitados: a) as municipalidades se recusarem a cumprir a obrigação legal e não pagarem pela criação dos enjeitados; nesse caso, os expostos eram redistribuídos entre as famílias dispostas a criá-los gratuitamente; b) as câmaras pagarem pela criação até os sete anos dos enjeitados, mas não possuírem uma roda anônima ou instituição que se encarregue de distribuir os recém-nascidos; nesses casos, a circulação das crianças pelas famílias criadeiras é feita majoritariamente entre os habitantes e o pagamento pode ser um componente incentivador para o aumento das taxas;[8] c) as câmaras gerenciarem uma roda anônima, com um corpo de funcionários dedicados à administração dos abandonados; d) as câmaras estabelecerem contratos de pagamento regular com as irmandades da Misericórdia de sua respectiva localidade.

Nos dois primeiros cenários, as crianças eram deixadas nas soleiras das portas dos moradores, nas igrejas e praças. No caso brasileiro, há estudos de fôlego para a cidade de Sorocaba, Vila Rica (atual Ouro Preto), Mariana, Curitiba, Natal, Porto Alegre. Embora a criação de expostos seja diretamente associada às Santas Casas, durante o período colonial, apenas duas Santas Casas de Misericórdia administraram rodas anônimas: Salvador (1726) e Rio de Janeiro (1738). A Casa da Roda do Recife (1788), ao que tudo indica, foi administrada pela câmara local. Para os três casos, há estudos específicos.

Muitas razões contribuíram para a pequena institucionalização das rodas no Brasil colonial. A roda oferecia um serviço de acesso universal e irrestrito a uma população miscigenada. Pelo menos em três regiões, as autoridades locais viram com receio o acesso indiscriminado a negros e mulatos: Ribeirão do Carmo (Mariana depois de 1745), Vila Rica (Ouro Preto depois de 1823), ambas em Minas Gerais e a Casa da roda do Recife. Aos olhos dos administradores, esse tipo de caridade deveria servir a famílias honradas - diga-se, brancas -, ciosas de perder a reputação por um desvio das mães. Essa atitude restritiva não surtiu maior efeito sobre o fenômeno. Na contramão do que esperavam os camaristas e administradores, o abandono continuou vigoroso. O pagamento universal e os vários fatores que impulsionaram o abandono (pobreza, questões morais, desestruturação familiar e a preservação do anonimato), acabaram por dinamizar a circulação de crianças.

Em virtude da proximidade geográfica, Mariana e Vila Rica assemelharam-se bastante nas ações contra negros e mulatos, ao longo da década de 1750. Entretanto, é surpreendente encontrar, depois de várias derrotas jurídicas, a permanência da prática de selecionar enjeitados a partir da cor das crianças, na câmara de Mariana, em pleno século XIX.[9]

 

Os destinos cruzados de órfãos e enjeitados

À medida que se avança no tempo, é possível observar que a influência das ideias iluministas seria responsável por correntes de pensamento que valorizavam, sobremaneira, a utilidade do trabalho como elemento de transformação. No Ocidente como um todo, e em Portugal, em particular, a partir da segunda metade do século XVIII, notava-se o esforço no sentido de tornar "útil" a população do reino e do império, por meio de ações de controle. Não por acaso, as referências feitas, nos descritivos dos documentos do Arquivo Nacional, ressaltam aspectos como educação e instituições, dois temas caros à segunda metade do século XVIII e que seguiu num crescendo a partir de então.

De um ponto de vista institucional, tanto os órfãos pobres como os expostos passaram a ser vistos como grupos cuja utilidade deveria ser mais bem direcionada. A criação da Intendência de Polícia de Lisboa, em 1760, um misto de controle social e moral, representou um momento de inflexão nas políticas de controle social e valorização da população do reino. Em 1780, criou-se a primeira "Casa Pia", um espaço de reclusão e trabalho para as populações "inúteis", em que era possível perceber a incorporação de parte dos órfãos e expostos. Em 1783, uma circular do intendente de polícia, Pina Manique, mandou criar rodas de expostos em todas as vilas e cidades do reino e domínios. Embora tenha permanecido letra-morta na América portuguesa, a intenção da circular era explicitamente conservar a vida dos enjeitados para, assim, torná-los úteis para o Estado.

Essa orientação utilitarista permanecia vigorosa no espírito da Intendência de Polícia do Rio de Janeiro, no início do século XIX. Em 1810, o juiz do crime da cidade enviou uma correspondência ao intendente de Polícia Paulo Fernandes Viana, solicitando que se buscassem pela região, especialmente no bairro de São José, "com ou sem apoio do juiz dos órfãos", 20 rapazes, órfãos ou não, brancos e pardos, que pudessem aprender ofícios. Os rapazes disponíveis teriam vestuário e receberiam acréscimo conforme fossem melhorando no ofício; além disso, ficariam isentos de serem soldados.[10]
Se no círculo comunitário mais informal, expostos e órfãos pobres eram dependentes de redes de clientela que permaneceram nessas mesmas bases, era possível notar mudanças sensíveis, especialmente a partir da segunda metade do século XVIII, no discurso e na orientação institucional que passaram a valorizar sobremaneira a educação e a formação profissional; em uma palavra, a "utilidade" dos membros da república. Na América portuguesa, até o fim do período colonial, não houve Casas Pias, não obstante o discurso de utilidade estivesse presente na documentação administrativa como um todo.


[1] Ver o caso de Felicidade Perpétua de Lima, em 1823. Arquivo Nacional, Mesa da Consciência e Ordens, caixa 316, pct. 1 (1807-1828).[2] Arquivo Nacional, Negócios de Portugal, Livros de consultas da Mesa do Desembargo do Paço, Códice 250, vol. 02 (1814-1816). Ver ainda o caso de Ana da Cruz, viúva de Bento Esteves de Araújo, que consta na relação de documentos. Arquivo Nacional, Secretaria de Estado do Brasil, Correspondência da Corte com o vice-reinado, códice 67, vol. 12, 1784.
[3] As órfãs poderiam se casar aos 18 anos sem consentimento parental. A depender do caso, os órfãos poderiam ser emancipados antes dos 25 anos. Ver o conjunto documental "Emancipações". Arquivo Nacional. Vice-reinado. Emancipações - pedidos dirigidos a vice-reis, caixa 489, pct. 2 (1806-1808).
[4] Arquivo Nacional, Relação da Bahia, Livro dourado da Relação do Rio de Janeiro. Contêm alvarás, provisões, títulos de carta e leis sobre vários objetos. Códice 934. (1534-1612). fls. 112v,113 e 113v.
[5] Ver, entre outros, o caso da viúva, residente em Pernambuco, Luzia Perpétua Carneiro de Souto Maior, que, em 1814, solicitou ao juiz dos órfãos que passasse a tutoria de seus filhos para alguém considerado idôneo, devido aos roubos dos bens que ela estava sofrendo. Arquivo Nacional, Série Interior, Ministério do Reino. Pernambuco. Correspondência do presidente da província, IJJ9 244, (1811-1824).
[6] Princípio reafirmado por alvará pombalino de 31 de janeiro de 1775.
[7] Como, em 1738, a Misericórdia do Rio de Janeiro começou a acolher os enjeitados sistematicamente por meio de uma roda, já na década de 1740, a câmara se desincumbiu de tratar diretamente dos enjeitados, transferindo para a Santa Casa um estipêndio regular. Ver: Arquivo Nacional, Série Saúde, Santa Casa da Misericórdia (Rio de Janeiro), IS³ 1, 1771-1909.
[8] Tal como acontecia nos locais onde havia rodas anônimas.
[9] Arquivo Nacional, Mesa do Desembargo do Paço, Tribunal Do Desembargo do Paço e Mesa da Consciência e Ordens. Registro de ordens. Códice 19, vol. 01 (1812-1813), 1815.
[10] Arquivo Nacional, Polícia da Corte, Registro da correspondência da Polícia. Ofícios da polícia aos ministros de Estado, juízes do crime, câmara etc. Códice 323, vol. 2 (1810-1812), f. 16-16v.

 

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