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Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 12h26 | Última atualização em Terça, 07 de Agosto de 2018, 19h38

Nívia Pombo Cirne dos Santos
Pesquisadora da Revista Nossa História e Mestre em História - UFF

Portugal, no final do século XVIII, ficou marcado pela apresentação de uma forma muito peculiar do pensamento ilustrado europeu. Nesse momento, encontram-se claramente definidas as mudanças sofridas nos equilíbrios do poder e da sociedade portuguesa. O reinado de d. Maria I, tributário de um longo passado de críticas ao atraso português em relação à cultura européia e das políticas reformistas conduzidas pelo marquês de Pombal, teve na Ilustração a base teórica para a condução de sua política.

Para o período iniciado em torno de 1777, dois aspectos são extremamente relevantes para a análise das idéias políticas: de um lado, a criação, em Portugal, de instituições de sociabilidades aos moldes dos padrões de intelectualidade européia conformou um clima de opinião, marcado pelo pragmatismo e pelo ecletismo filosófico; de outro, os posicionamentos político-diplomáticos portugueses demonstraram o grau de aceitação da Coroa frente às novidades e às instabilidades do cenário internacional. Como afirmou o historiador português Diogo Ramada Curto, esses dois movimentos, apesar de distintos, estiveram muito imbricados nas consciências da época.

Antes de prosseguir com a análise do tema “Portugal e as idéias políticas”, é necessário efetuar algumas considerações preliminares. A primeira delas relaciona-se ao recorte cronológico escolhido para a pesquisa situada entre 1777 – início do reinado de d. Maria I – e 1821, quando parte desses ideais, adaptados pela elite intelectual da América portuguesa, iria conformar as justificativas para a Independência, criando o império do Brasil. Quanto à eleição dos argumentos de pesquisa capazes de compor a noção de idéias políticas, foi necessário recorrer a uma das definições sugeridas pelo historiador Robert Darnton de uma história das idéias baseada no estudo das formas assumidas pelo pensamento, nos climas de opinião, ou, ainda, nos movimentos literários. Assim, foram escolhidos os temas Ilustração e maçonaria; Portugal – sistema continental e Revolução Francesa; e, Academias científicas e literárias, capazes de fornecer ao leitor uma modesta compreensão do prolífero movimento das luzes portuguesas e suas implicações políticas.

Definida a temática “ilustrada”, outro apontamento preliminar vincula-se aos fundos ou coleções do acervo do Arquivo Nacional, nos quais foram encontrados esses argumentos de pesquisa. A ocorrência desses assuntos em determinados fundos como Negócios de Portugal, Vice-Reinado e Secretarias de Estado, ligados à administração do império marítimo português, pode ser compreendida sobre dois aspectos: o primeiro, da tipologia dos documentos sob guarda da instituição composta de registros oficiais (correspondências entre ministros e agentes metropolitanos, alvarás, cartas régias etc.) afinados com a política reformista ilustrada implementada pela Coroa portuguesa. O segundo, relacionado ao anterior, informa que a Ilustração em Portugal passava pelos circuitos da reduzida elite governamental e dos intelectuais que gravitavam em torno dela.

Abandonando uma narrativa cronológica dos acontecimentos, situaremos, inicialmente, alguns aspectos da política diplomática portuguesa. Segundo o historiador Valentim Alexandre, ao longo do século XVIII, a Coroa portuguesa possuía quatro vetores estratégicos de política externa: defesa da metrópole, frente ao perigo representado pelas constantes alianças entre a Espanha e a França; proteção do comércio colonial; preocupação com os limites territoriais do Brasil; e, por último, a preservação das possessões africanas e do fluxo de escravos. Ao lado dessas preocupações, sobrevinha o apoio fundamental da Inglaterra, por meio de alianças que variavam de acordo com a conjuntura externa. Frente a esses meandros diplomáticos, a Coroa portuguesa conduziria uma cautelosa política externa que permitiu a manutenção do ritmo das reformas ilustradas no plano interno.

No período que se seguiu a Revolução Francesa, os acontecimentos não pareceram para Portugal algo para se preocupar e, ao contrário, as perturbações políticas, em Paris, contribuíram para uma redução das pressões internacionais. Contudo, os problemas internos da França evoluíram rapidamente e a projeção dos conflitos seguida da deflagração de uma guerra continental vão ser os assuntos da pauta da política metropolitana do final do século XVIII e início do XIX. Resultava dessa situação, a importância de manter uma política de neutralidade. Essa postura apenas seria alterada no ano de 1796, momento do alinhamento definitivo da Espanha com a França. Portugal fica impelido a definir sua posição, enquadrando-se nessa conjuntura as diversas preocupações em torno da assinatura do Tratado de Paris (1797), entre elas as do plenipotenciário d. Antônio de Araújo de Azevedo, em enviar correspondências cifradas a Luís Pinto de Sousa Coutinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, descrevendo o panorama político francês e a situação de Portugal perante os conflitos.

O clima de conspiração desencadeado pelos “princípios franceses” veio acompanhado de um aumento da censura, no qual não apenas livros perigosos são perseguidos, mas também as correspondências trocadas e seus conteúdos. As cartas cifradas, como o ofício anônimo que relata uma conversa com Luciano Bonaparte, aparecem no grosso volume de correspondências da coleção Negócios de Portugal, sinalizando para o sigilo que os planos precisavam guardar naquele momento. A cultura diplomática portuguesa baseava-se na observação e na descrição de posicionamentos políticos dos estados europeus, para a manutenção da política de neutralidade. A prudência nas negociações com a França e com a Espanha, aspecto que sobressai desses documentos, vinha acompanhada do medo dos “sinistros fins”, como avisava d. João ao governador de Minas Gerais, de uma guerra contra tais potências. Em estado de alerta, a Coroa avisava não só os governadores, mas, sobretudo, os governados: em 1798, o conde de Resende, vice-rei do Brasil, escrevia a d. Rodrigo de Sousa Coutinho, dizendo estar aguardando uma obra que possuía o intento de mostrar “um quadro fiel acerca da Revolução”. Diminuir a curiosidade dos súditos ultramarinos em torno dos tumultos revolucionários era um meio de assegurar lealdade à Coroa portuguesa.

O risco de uma política externa desastrosa era real. Por essa razão foram diversas as tentativas de acordos com termos que não colocassem em risco a integridade territorial do império português. Conciliar as pretensões francesas com as pressões inglesas era um exercício diplomático delicado: as ameaças de Napoleão Bonaparte, de fazer Portugal padecer da “triste sorte” que outras potências da Europa já haviam experimentado, vinham acompanhadas de exigências como fechamento dos portos portugueses à Inglaterra, prisão e seqüestro de bens dos ingleses residentes em Portugal. Em contrapartida, para manter a neutralidade sem prejuízo para a Inglaterra, Portugal via-se obrigado a pagar pesadas indenizações à França, como a que consta no ofício de 22 de fevereiro de 1804, de dezesseis mil francos, para evitar a proibição da entrada de embarcações inglesas em seus portos. Essas pressões aumentaram no início do século XIX, culminando com reuniões do Conselho de Estado, como a de 30 de setembro de 1807, para decisões de alinhamentos pró França ou Inglaterra e com a saída da Corte da Europa, no final do mesmo ano, atitude sinalizada pela famosa carta do marquês de Alorna que, em 1803, já aconselhara a vinda da família real para o Brasil.

Paralelo às preocupações de ordem diplomática estava a política reformista ilustrada portuguesa. A prática de observar o panorama político dos Estados europeus adquire um novo sentido no final do século XVIII com a influência das idéias ilustradas. De acordo com o historiador Diogo R. Curto, a cultura diplomática desenvolvida em Portugal desde a Restauração foi progressivamente alterada por uma cultura cosmopolita de viajantes. Lisboa atraía viajantes e promovia a formação de uma cultura cosmopolita. Interessa dessa observação uma versão específica desse cosmopolitismo: a formulação de uma cultura política que vê nos domínios portugueses (Europa, Ásia, África e Brasil) um sistema político. D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi o principal divulgador desse princípio, no momento em que esteve à frente da Secretaria dos Negócios da Marinha e Ultramar. Na correspondência com Caetano Pinto de Miranda, governador do Mato Grosso, revelou suas preocupações em ampliar a comunicação entre as capitanias do norte e do sul, expressando o princípio de uniformidade entre as capitanias e expondo a posição de Portugal como “centro” do sistema. Essa forma de conduzir a política ultramarina, que não deve ser confundida com a noção de pacto colonial mercantilista, está inserida no projeto de império pensado pela elite intelectual luso-brasileira. Era um novo debate sobre uma política ultramarina.

A assimilação, por parte da administração central, da necessidade de conduzir uma política pragmática, como forma de manter a integridade do império português, derivava de um esforço reformista intensificado no reinado de d. Maria I. A criação, sob o patrocínio da Coroa, de instituições de sociabilidade contribuiu para uma dilatação do ambiente político português. O aumento da circulação de livros e periódicos em Portugal, como a iniciativa do príncipe d. João de permitir a circulação de um gabinete de leitura, e nas colônias, os envios de periódicos como o Mercúrio Britânico e de obras para a ampliação das “culturas do Brasil”, somava-se à produção memorialística fomentada pelas academias científicas. As memórias da Academia das Ciências de Lisboa, criada em finais de 1779, produziram as principais reflexões da situação do império português frente às novas teorias e doutrinas político-econômicas européias. No Arquivo Nacional, o conjunto de memórias do códice 807 é expressivo dessa forma de divulgar o estudo da natureza americana, ressaltando potencialidades úteis à economia do reino, a partir da transformação dos relatos, de funcionários régios, em projetos específicos a cada realidade descrita, conferindo à questão colonial uma nova identidade.

Da produção de memórias econômicas aos envios de “pássaros e outras curiosidades” da história natural, a Academia serviu, de acordo com Oswaldo Munteal Filho, como centro de um novo ideário reformista. Reside nisso também a peculiaridade do movimento ilustrado português. Ele foi um produto da Coroa portuguesa e não um movimento que envolvia toda a sociedade, e a criação de academias funcionou como forma de aglutinar os saberes ilustrados, especialmente de controlar a produção filosófico-científica luso-brasileira. Iniciativas que escapassem a esse caráter eram reprimidas pela Coroa. Reuniões e atividades, como as realizadas pela Sociedade Literária do Rio de Janeiro, na qual seus membros foram acusados de enaltecer os princípios revolucionários franceses, ou pelas lojas maçônicas que, secretas e ambíguas, eram acusadas de desafiar a ordem estabelecida, não eram bem vistas pelas autoridades metropolitanas. Devassas e apreensões como as ocorridas no navio Conceição procuravam controlar as sedições. Como salientou o historiador István Jancsó, a sedição é a revolução desejada, a política do futuro nos interstícios do presente.

O espectro da “revolução” permaneceria na Colônia mesmo após a chegada da Corte ao Rio de Janeiro, em 1808. Em 1812, panfletos de protestos contra o príncipe d. João foram apregoados pela cidade de Salvador, criticando o despotismo e a influência inglesa, representada pelo lorde Strangford. A entrada de muitos estrangeiros, como relatado pelo intendente de polícia Paulo Fernandes Viana, foi também motivo de preocupação: o medo de uma conspiração promovida por revolucionários franceses era latente, e como afirmou Manuel Inácio de Sampaio, governador do Ceará, se referindo ao fato de que após a Revolução Pernambucana era crescente o número de pessoas embarcando para o Brasil, isso contribuía para a diminuição “de espíritos revolucionários na França”.

Tempos difíceis foram esses em que reformas e revoluções eram caminhos possíveis e diversos para alterar as estruturas das sociedades. No caso português, o reformismo ilustrado foi o rumo desejado, e bem encaminhado, no período pós-1777. Apesar do freio imposto pela conjuntura diplomática do final do século XVIII às utopias de reformas do absolutismo ilustrado, foi necessário reformular as bases teóricas, nas quaisse assentavam as relações entre Portugal e suas colônias. Mesmo com o perigo dos “espíritos revolucionários” habitando o terreno doméstico, Portugal conseguiu criar saídas originais para manter seu império.
 

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