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Ordens Terceiras

Sala de aula

Escrito por Mirian Lopes Cardia | Publicado: Quarta, 23 de Mai de 2018, 14h07 | Última atualização em Segunda, 11 de Junho de 2018, 13h36

Licença para ensinar

Cópia do pedido de Raimundo de São Francisco, homem preto, da Ordem Terceira de São Francisco à rainha Maria I de licença para ensinar a escrever, ler e contar aos seus companheiros "pretos" com base na doutrina cristã. 

Conjunto documental: Correspondência da Corte com o Vice-Reinado
Notação: códice 67, vol. 22
Datas-limite: 1797-1797
Título do fundo: Secretaria do Estado do Brasil
Código do fundo: 86
Argumento de pesquisa: Ordem dos Frades Menores Capuchinhos Italianos
Data do documento: 11 de fevereiro de 1797
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 22

Senhora. Diz. Raimundo de São Francisco, homem preto, natural do Rio de Janeiro e da Ordem de São Francisco[1], que tendo-lhe vossa majestade[2] concedido licença pela provisão inclusa para ensinar a ler, escrever e contar[3], e desejando o suplicante ir doutrinar pelo amor de Deus e movido da caridade cristã os seus irmãos pretos[4], instrui-los nos preceitos de Deus e da Igreja, dos quais tem pouca notícia, tanto pelas grandes distâncias em que vivem das paróquias, como porque não entendendo a língua portuguesa[5], e vendo-se de outra cor, se não facilitam a instrução, que só poderá aproveitar, sendo-lhes dada por outros seus semelhantes, não pode por si só com tão grande trabalho por serem imensos os que povoam a dita cidade e seus distritos. Para que se possa os satisfazer a tão santo, e útil desejo pretende, que vossa majestade lhe conceda faculdade para associar a si alguns companheiros pretos, que o ajudem no referido ministério da instrução cristã no tempo em que os pretos estiverem livres dos trabalhos, em que são ocupados por seus senhores. Pede a vossa majestade seja servida fazer lhe essa graça. E receberá mercê[6]. Raimundo de São Francisco

 Está conforme

 Manoel de Jesus Valdetare

 

[1]3ª ORDEM DE SÃO FRANCISCO: associação religiosa formada por leigos, organizados em torno das ideias e preceitos de São Francisco de Assis. Norteia-se pela utopia franciscana que prega a prática da pobreza, a fraternidade e a igualdade. O surgimento das ordens terceiras a partir do século XII está relacionado a um contexto de renovação do exercício da espiritualidade, inspirada em um cristianismo que valoriza o que teriam sido as práticas dos primeiros discípulos de Cristo, resultando em uma maior participação dos leigos. Foi a primeira das ordens terceiras, intitulada de Ordem da Penitência de São Francisco. Recebeu reconhecimento formal da cúria romana por meio do Memoriale propositi fratum et sororum de poenitentia, em 1221, considerada a primeira Regra da Ordem. Segundo esta, os "irmãos e irmãs da penitência", como eram conhecidos, deveriam manter a austeridade nos trajes, privar-se de bailes, banquetes e ajuntamentos solenes, observar a prática do jejum em alguns dias da semana, além de regularmente frequentar os sacramentos da confissão e da comunhão. Em 18 de agosto de 1289, através da bula Supra montem, o papa Nicolau IV, lhe conferiu reconhecimento canônico como Ordem Terceira de São Francisco de Assis. As primeiras ordens terceiras franciscanas chegaram ao Brasil ainda no século XVII. Em 20 de março de 1619 foi fundada a Ordem Terceira de São Francisco Assis na cidade do Rio de Janeiro. Além das regras que eram comuns a todas as filiais da mesma ordem, havia os estatutos particulares de cada associação que variavam conforme a localidade. Para ingressar na associação o candidato devia apresentar informações sobre seu oficio, estado e "qualidades" enquanto às mulheres exigia-se à autorização de seus maridos. De maneira geral, as exigências relativas à entrada de um membro se baseava nos critérios de pureza étnica, excluindo-se os descendentes de negros, judeus, e cristãos novos, embora o último caso nem sempre tenha ocorrido. O estatuto dos terceiros franciscanos do Rio de Janeiro, de 1801, aboliu o impedimento ao ingresso dos judeus convertidos. É importante ressaltar que os esses critérios não incluíam os descendentes de escravos africanos. Após o processo de seleção o membro passava por um período de preparação para profissão religiosa denominado noviciado. Durante o noviciado, o indivíduo era submetido a exercícios espirituais, além de ser instruído nas regras da associação. Dentro da hierarquia da Ordem, os postos de comissário visitador e irmão ministro representavam os mais altos cargos nos planos espiritual e temporal, respectivamente. Ao comissário cabia os sermões, práticas, profissões de irmãos e mais exercícios espirituais. Somando-se a isso, o comissário visitador participava como membro votante nas reuniões convocadas pela mesa administra da Ordem. A eleição anual do comissário era feita pelos religiosos que deveriam escolher diante de uma lista aprovada previamente pelos irmãos. A escolha do ministro e dos demais mesários era baseada em uma lista elaborada pelo secretário da mesa, o qual indicava três irmãos para o cargo com base nas qualidades necessárias. Essa lista era divulgada ao público um mês antes da eleição, sendo a votação secreta.

[2]MARIA I, D. (1734-1816): Maria da Glória Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana, rainha de Portugal, sucedeu a seu pai, d. José I, no trono português em 1777. O reinado mariano, época chamada de Viradeira, foi marcado pela destituição e exílio do marquês de Pombal, muito embora se tenha dado continuidade à política regalista e laicizante da governação anterior. Externamente, foi assinalado pelos conflitos com os espanhóis nas terras americanas, resultando na perda da ilha de Santa Catarina e da colônia do Sacramento, e pela assinatura dos Tratados de Santo Ildefonso (1777) e do Pardo (1778), encerrando esta querela na América, ao ceder a região dos Sete Povos das Missões para a Espanha em troca da devolução de Santa Catarina e do Rio Grande. Este período caracterizou-se por uma maior abertura de Portugal à Ilustração, quando foi criada a Academia Real das Ciências de Lisboa, e por um incentivo ao pragmatismo inspirado nas ideias fisiocráticas — o uso das ciências para adiantamento da agricultura e da indústria de Portugal. Essa nova postura representou, ainda, um refluxo nas atividades manufatureiras no Brasil, para desenvolvimento das mesmas em Portugal, e um maior controle no comércio colonial, pelo incentivo da produção agrícola na colônia. Deste modo, o reinado de d. Maria I, ao tentar promover uma modernização do Estado, impeliu o início da crise do Antigo Sistema Colonial, e não por acaso, foi durante este período que a Conjuração Mineira (1789) ocorreu, e foi sufocada, evidenciando a necessidade de uma mudança de atitude frente a colônia. Diante do agravamento dos problemas mentais da rainha e de sua consequente impossibilidade de reger o Império português, d. João tornou-se príncipe regente de Portugal e seus domínios em 1792, obtendo o título de d. João VI com a morte da sua mãe no Brasil em 1816, quando termina oficialmente o reinado mariano.

[3]PARA ENSINAR A LER, ESCREVER E CONTAR: a cadeira de Primeiras Letras destinava-se a ensinar a ler, escrever e contar, e sob orientação inaciana, aprendia-se a religião católica. Em 1722, uma nova cartilha foi apresentada ao rei de Portugal, dom João V, chamada Nova Escola para Aprender a Ler, a Escrever e a Contar, elaborada pelo jesuíta Manoel de Andrade de Figueiredo. Integrava os estudos menores, o aprendizado de gramática e línguas latinas, matemáticas, conhecimentos morais, físicos e econômicos, indispensáveis para a formação do indivíduo. No ensino médio, cursos de humanidades e artes incluíam as aulas de gramática latina, grego e retórica, e artes e ciências da natureza. Durante os primeiros séculos do período colonial, a educação era restrita aos filhos de colonos e índios aldeados. Os jesuítas estiveram à frente do processo educacional até sua expulsão em meados do século XVIII. Após a reforma educacional empreendida por Pombal, o ensino passou a ser responsabilidade do Estado português, inclusive em territórios coloniais, e aulas régias foram introduzidas substituindo as antigas disciplinas oferecidas nos colégios jesuítas. Buscou-se secularizar a educação, preparando uma pequena elite colonial para os estudos posteriores na Europa. A educação formal era um privilégio da elite branca, ficando vetada aos escravos. No Império, a Constituição de 1824, que garantia o direito de todo cidadão brasileiro à instrução pública, não considerava o escravo como cidadão. O veto tornou-se explícito pela resolução imperial de 1º de julho de 1854 que determinava que os professores recebessem por seus discípulos “todos os indivíduos que para aprenderem as primeiras letras, lhe forem apresentados, exceto os cativos, e os afetados de moléstias contagiosas”. Como a maior parte dos cativos exercia atividades que não exigiam o domínio da leitura e da escrita, o índice de analfabetismo era quase geral entre a população escrava. Entretanto, o exercício de algumas profissões também desempenhadas por escravos, como as de alfaiate e carpinteiro, exigiam um conhecimento básico da escrita, leitura e contagem. Nesses casos, acredita-se que este aprendizado tenha se efetuado na casa do senhor, prática bastante incomum, não obstante a valorização dos escravos que sabiam ler e escrever, como se observa nos anúncios de época nos quais era recorrente a descrição das habilidades dos escravos foragidos ou à venda. Além de marcas e cicatrizes, realçavam-se atributos como ofício, habilidade musical, de leitura ou de escrita. No século XVIII, nas irmandades negras, a escrita era produzida pelos brancos que, em uma estratégia de controle ou até mesmo por devoção, ingressavam nessas associações. Variados motivos levavam os negros a aceitar a participação de brancos nas irmandades, dentre eles a falta de instrução para cuidar dos livros e para escrever e contar, exigência de cargos como os de escrivão e tesoureiro. Em 1789, os membros da Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco em Salvador enviam para a coroa portuguesa um pedido de exclusão dos brancos dos cargos de escrivão e tesoureiro, argumentando que, naquele ano (1789), já havia negros letrados, que “a iluminação do século [nos] tem feito inteligentes da escrituração e contadoria”. Considerando-se que as irmandades promoviam a ajuda mútua, por exemplo, na compra de alforrias, pode-se pensar que essa ajuda tenha se estendido ao campo de alfabetização. Os compromissos e outros documentos das irmandades de negros são uma das poucas fontes históricas do período colonial de autoria dos próprios, embora muitas vezes, mesmo nestas associações, a escrita ficasse a cargo de brancos.

[4]IRMÃOS PRETOS: as associações religiosas formadas por leigos desempenharam um papel muito importante na vida dos negros e seus descendentes no Brasil, o que é mais explícito no caso das irmandades. Estas se organizavam geralmente em torno da devoção a um santo, entretanto podiam funcionar ainda como associações de classe, profissão, “cor” e nacionalidade. Na colônia, existiram, portanto, irmandades de brancos, negros e mulatos. Tais associações possuíam um caráter de ajuda mútua, promovendo assistência material em vida e na morte aos seus membros, como era o caso da compra de alforrias. Proporcionavam a convivência de indivíduos de diversas origens sociais e representavam garantia de inserção social e de proteção, principalmente para os segmentos menos favorecidos. Pertencer a uma dessas associações significava dar legitimidade às práticas religiosas, contar com auxílio para as eventuais dificuldades da vida, garantir o sepultamento e a celebração de missas pelas almas. Outro fator positivo era a intensa vida social, como as festas promovidas em homenagem aos santos padroeiros ou de devoção. Acredita-se que as irmandades tenham servido de instrumento para que os africanos e os seus descendentes pudessem manter e transmitir as suas tradições, fazer contatos frequentes e preservar as suas línguas de origem. As ordens terceiras diferenciavam-se das irmandades por estarem subordinadas às tradicionais ordens religiosas de origem medieval. Como as exigências para a entrada em uma ordem terceira baseavam-se nos critérios de pureza étnica, excluía-se a participação de negros e seus descendentes. Entretanto, na prática, a obediência a esses critérios não parece ter sido tão rígida no caso brasileiro. No período pombalino, no bojo das reformas de caráter ilustrado, observa-se uma série de alterações na legislação como a revisão de critérios tradicionais de limpeza de sangue. Assim, no ano de 1773, foi anulada a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, e determinado que os escravos residentes em Portugal que se encontravam na quarta geração de cativeiro e os que nascessem a partir da publicação da lei, e estivessem na terceira geração, seriam libertados. Os agraciados pela lei estariam automaticamente habilitados ao exercício de todos os ofícios e honras da monarquia, não pesando mais sobre eles a nota de “infâmia”. Na América portuguesa, o conhecimento dessas novas leis implicou no questionamento da antiga legislação discriminatória, o que permitiu, em alguns casos, a participação de negros e seus descendentes nas ordens terceiras.

[5]NÃO ENTENDENDO A LÍNGUA PORTUGUESA: provindos de diferentes regiões do continente africano, os negros escravizados no Brasil não compartilhavam uma mesma língua de origem. O convívio entre indivíduos de diferentes “nações” começava no litoral da África, onde aguardavam a partida do navio negreiro que os levariam à América na condição de escravos. Acredita-se que essa situação provisória tenha propiciado a adoção de uma língua veicular, compreensível a todos e de matriz africana. No entanto, ao desembarcarem no Brasil, eram vendidos a diferentes senhores, ocorrendo uma nova separação e mistura de povos. A política de separar os escravos de uma mesma etnia foi adotada, sobretudo, para evitar que a identidade comum facilitasse a resistência ao cativeiro. Assim, o português, língua do colonizador, foi imposta como padrão, a despeito do caldeirão cultural e linguístico do povo negro escravizado. Cabe ressaltar que, o próprio português se transformou sob a influência das diversas línguas de origem africana, bem como dos diferentes idiomas indígenas. Os africanos recém-chegados que não tinham nenhum conhecimento da língua portuguesa eram conhecidos como boçais. Os que estavam no Brasil há algum tempo e, portanto, tinham mais domínio do português, recebiam a alcunha de ladinos. Já os escravos nascidos no Brasil, integrados à cultura local, eram conhecidos como crioulos.

[6]MERCÊ: O mesmo que graça, benefício, tença e donativos. Na sociedade do Antigo Regime, a concessão de mercês era um direito exclusivo do soberano, decorrente do seu ofício de reinar. Cabia ao monarca premiar o serviço de seus súditos, de forma a incentivar os feitos em benefício da Coroa. Desse modo, receber uma mercê significava ser agraciado com algum favor (concessão de terras, ofícios na administração real, recompensas monetárias), condecoração ou título pelo rei, os quais eram concedidos sob os mais variados pretextos. Em 1808, após a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, foi criada a Secretaria do Registro Geral das Mercês, subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, quando da recriação, no Rio de Janeiro, dos órgãos da administração do Império português. Tinha por competência o registro dos títulos de nobreza e de fidalguia concedidos como graça, benefício e recompensa pelo monarca. As formas mais frequentes de mercês eram os títulos de nobreza e fidalguia, com as terras e tenças correspondentes, os hábitos das Ordens Honoríficas, cargos e posições hereditários. A concessão de mercês era também uma forma do monarca balancear os privilégios entre seus súditos, mantendo os bons serviços prestados por quem já havia conquistado alguma graça e incentivando o bom trabalho dos que almejavam obtê-las. Com a transferência da Corte da Europa para a América, poder-se-ia crer que os súditos da terra passariam a obter mais mercês, mas a hierarquia que havia entre a metrópole e a colônia, reproduzida na concessão de benefícios acabaria por se manter na colônia, mesmo depois da elevação a Reino Unido. Poucos títulos de nobreza foram concedidos, uma vez que na América não havia a nobreza de sangue, de linhagem, mas somente a concedida por grandes favores prestados ao reino, políticos ou militares. Entre as ordens honoríficas observa-se que houve a concessão de mais títulos, mas a maioria de baixa patente ou menor importância, os mais altos graus ainda eram reservados para a nobreza metropolitana. Mesmo concedendo hábitos, títulos de cavaleiros, posições e cargos, as mercês reservadas aos principais da colônia eram inferiores àquelas reservadas aos grandes da metrópole.

Frades e Terceiros de Santo Antônio

Correspondência de Aires de Saldanha de Albuquerque, governador da capitania do Rio de Janeiro, ao vice-rei do Brasil, Vasco Fernades de Menezes, tratando dentre outros assuntos, das contendas entre os terceiros e os religiosos do convento de Santo Antônio.

Conjunto documental: Correspondência dos governadores do Rio de Janeiro com diversas autoridades
Notação: códice 84, vol. 01
Datas-limite: 1718 - 1724
Título do fundo: Secretaria de Estado do Brasil
Código do fundo: 86
Argumento de pesquisa: Ordens terceiras
Data do documento: 27 de setembro de 1723
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 72v a 74

 

"Pelo Bargantim[1] do contrato do ferro recebi a carta de Vossa Excelência[2] de vinte de agosto, pela qual me avisa haver Vossa Excelência recebido as minhas cartas de dois do corrente.

(...)

Não há dúvida que recusei dar ajuda, e favor ao Ouvidor geral[3] para meter de posse aos terceiros[4] expulsos do convento de Santo Antônio[5], e para isto tive o fundamento primeiramente de ver que o dito Ouvidor, inclinado à parcialidade contrária, obrava nesta matéria mais com paixão que com razão, para o que darei conta a Vossa Excelência da origem destas bulhas entre terceiros e frades[6].

Por umas penitências, que um comissário dos terceiros[7] quis dar a uns deles, os quais as não quiseram admitir, se excitou bulha entre os frades e terceiros, do que resultou expulsarem os frades a todos os terceiros da capela, e do Convento, ao que se seguiu uma demanda entre uns e outros, esse interim que se litigava se dividiram entre si os terceiros, e formaram duas mesas[8] cuja divisão foi a decidir ao seu Geral e a Roma, estando nestes termos, chegou a sentença dessa Relação para que se intrometessem os terceiros na sua capela, na qual se achava uma das mesas, e a outra se acha em um hospício, que tem eregido nesta cidade: qual das duas é a verdadeira, é certo que não se sabe: o que suposto, parece que não devia o ouvidor geral encostar-se a uma das partes para insultar a outra, e sim dar conta da separação que havia das mesas e depois disto obrar o que a Relação[9] lhe ordenasse: além disso os Frades estão tão obstinados que me persuado, que morreriam na empresa primeiro do que deixar à entrar a capela, que é contígua com o Convento para o que tinham juntas muitas pedras nas partes que pareciam necessárias, e cuido que armas, que escondem em parte, em que não será fácil dar-se lhe com elas, porque estavam acautelados já com alguma notícia, que tiveram de que eu lhe queria mandar dar busca no Convento, e sobre tudo isto creio firmemente que haveria neste povo uma batalha, e segundo a obstinação, e o ódio que estão uns terceiros contra os outros, envolvendo em si a Ordem mais de mil e quinhentos terceiros: e como esta ação não envolvia em si utilidade nenhuma do povo, e poderiam seguir-se as consequências, que ficam ditas, tinha eu ajustado com o Ouvidor Geral; em que não se bolisse em matéria pertencente a frades, e a terceiros sem nova ordem de Sua Magestade[10], que Deus guarde, a quem eu sobre este particular dei conta, dizedo-lhe que suspendia ainda a execução da sua real ordem até que o dito senhor resolvesse a dúvida, que se me oferecia, sendo a mesma real ordem contra uma parcialidade de frades unidos aos que pretendiam a diligência do ouvidor, isto suposto se Vossa Excelência entende que devo dar ajuda ao Ouvidor, mande-mo por ordem sua, que logo o executarei.

(...)

Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1723

Ayres de Saldanha de Albuquerque[11]

 

[1]BERGANTIM: os bergantins eram navios de remos de traça, muito rápidos e de fácil manobra. Eram equipados com dez a dezenove bancos corridos de bordo a bordo. Envergavam tanto vela redonda quanto latina com um ou dois mastros. Nos primeiros tempos da presença portuguesa no Oriente realizavam as missões de contato, reconhecimento e transporte. Prestavam-se ainda a servir as fortalezas mais importantes, particularmente nas zonas onde a presença naval não era permanente. O bergantim era também uma embarcação de ostentação, favorito de monarcas e grandes senhores.

[2]MENESES, VASCO FERNANDO CÉSAR DE (1673-1741): agraciado com o título de conde de Sabugosa após ter ocupado o cargo de vice-rei do Brasil entre 1721 e 1735, era militar de carreira, filho de Luís César de Menezes e sobrinho de d. João de Lencastre, que também haviam governado o Brasil. À frente do governo da Índia (1712-1717) assegurou o domínio português do território e reorganizou a Junta Comercial com os mercadores de Diu. A segunda experiência, como governador ultramarino da coroa lusa seria no Brasil. Nomeado 4º vice-rei da colônia portuguesa em novembro de 1720, desembarcou na Bahia em 19 de março do ano seguinte. Logo nos primeiros anos de seu governo promoveu a produção da farinha de mandioca, a criação de gado e combateu os atravessadores de víveres como forma de debelar uma crise de abastecimento que acometia diversas regiões do Brasil. A sua administração facilitou a ligação por terra entre o sul e o centro-oeste, melhorando, principalmente, o tráfego de muares, e entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Fundou uma das primeiras academias literárias do século XVIII, Academia Brasílica dos Esquecidos, em 1724, na cidade de Salvador. A instituição reunia letrados da Bahia e promovia reuniões quinzenais no Palácio do governador-geral onde se discutia ciências, geografia e história do Brasil. Entre as publicações promovidas pela Academia consta a História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita.

[3]OUVIDOR: o cargo de ouvidor foi instituído no Brasil em 1534, como a principal instância de aplicação da justiça, atuando nas causas cíveis e criminais, bem como na eleição dos juízes e oficiais de justiça (meirinhos). Até 1548, a função de justiça, entendida em termos amplos, de fazer cumprir as leis, de proteger os direitos e julgar, era exclusiva dos donatários e dos ouvidores por eles nomeados. Neste ano foi instituído o governo-geral e criado o cargo de ouvidor-geral, limitando-se o poder dos donatários, sobretudo em casos de condenação à morte, entre outros crimes, e autorizando a entrada da Coroa na administração particular, observando o cumprimento da legislação e inibindo abusos. Cada capitania possuía um ouvidor, que julgava recursos das decisões dos juízes ordinários, entre outras ações. O ouvidor-geral, por sua vez, julgava apelações dos ouvidores e representava a autoridade máxima da justiça na colônia. Sua nomeação era da responsabilidade do rei, com a exigência de que o nomeado fosse letrado. Dentre as suas muitas atribuições, cabia-lhe informar ao rei do funcionamento das câmaras e, caso fosse necessário, tomar qualquer providência de acordo com o parecer do governador-geral. Ao longo do período colonial, o cargo de ouvidor sofreu uma série de especializações em função das necessidades administrativas coloniais. Dentre os cargos instituídos a partir de então, podemos citar o de ouvidor-geral das causas cíveis e crimes em 1609 (quando da criação da Relação do Brasil, depois desmembrada em Relação da Bahia e do Rio de Janeiro); o de ouvidor-geral do Maranhão em 1619, quando há a criação do Estado do Maranhão; e o de ouvidor-geral do sul em 1608, quando foi criada a Repartição do Sul.

[4]TERCEIROS: termo que designa os membros de uma ordem terceira – associações religiosas formadas por leigos, identificados a uma ordem religiosa tradicional. Funcionavam como representantes no mundo secular das ordens primeiras. O estabelecimento das ordens terceiras no Brasil foi favorecido no período conhecido como União Ibérica, quando as coroas portuguesa e espanhola estiveram unidas (1580-1640). A Espanha era adepta das ordens mendicantes como instrumento de conquista espiritual das suas colônias na América, o que permitiu que, durante a União Ibérica, o monopólio da atuação dos jesuítas no Brasil fosse dividido com outros grupos religiosos. A chegada das ordens terceiras na colônia esteve, na maioria das vezes, associada ao estabelecimento anterior das congregações mendicantes às quais estavam vinculadas. Assim, em geral, os terceiros se instalavam no mesmo terreno onde já se encontravam os conventos dos religiosos. Entretanto, tal lógica se inverte nas regiões de colonização mais recente, onde muitas vezes a presença dos religiosos não era permitida, como foi o caso de Minas Gerais. Tais associações sustentavam-se a partir de doações de seus membros, que não raro legavam propriedades às ordens. Para que uma ordem terceira fosse reconhecida oficialmente, e assim passasse a funcionar, seu compromisso deveria ser aprovado por três instâncias, em primeiro lugar, o bispo diocesano; em seguida pelo rei e por último, pelo papa. A dificuldade em obter a aprovação era grande, o que reduzia o número de ordens atuantes na colônia. Aqueles que desejassem ingressar nessas associações religiosas deviam passar por um processo seletivo baseado em critérios de pureza de sangue. Em princípio, era vetado o ingresso a pessoas de ascendência negra, judaica, escravos, forros, mulatos. No entanto, nem sempre tais regras eram seguidas à risca. Após aprovado, o novo membro deveria passar pelo período denominado de noviciado, no qual ele aprenderia as normas de conduta da ordem e seria instruído na educação religiosa. As regras deviam ser seguidas por todas as filiais, o que as diferenciavam de outras associações como as irmandades e as confrarias. Já os estatutos eram formulados pela filial, o que tornava possível as diferenciações dentro da mesma ordem. O sucesso das ordens terceiras durante o período colonial podem ser associado ao fato de estabelecerem um elo entre os dois lados do Atlântico, já que possibilitavam a circulação entre membros de diferentes filiais. Assim, tais associações religiosas serviam de referência aos portugueses recém-chegados da Europa, os quais as procuravam como forma de inserção social no Novo Mundo.

[5]CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO: os primeiros franciscanos chegaram ao Rio de Janeiro em 1592. Os freis Antônio dos Mártires e Antônio das Chagas vinham do Espírito Santo e ocuparam a ermida de Santa Luzia, ao pé do morro do Castelo. Mais de uma década depois, um novo grupo de franciscanos chega à cidade e transfere-se para novo terreno localizado no então Monte do Carmo, onde havia uma pequena capela dedicada a Santo Antônio. Entre o grupo estava Frei Vicente do Salvador, autor da primeira História do Brasil. O convento de Santo Antônio, que veio a rebatizar o morro, teve sua construção iniciada em 1608, mas os frades começaram a residir no prédio apenas em fevereiro de 1615. Na época de sua fundação, o convento localizava-se em uma região distante do núcleo de ocupação da cidade, facilitando a catequese dos índios dos atuais bairros de Santa Teresa, Catumbi e Rio Comprido. O mesmo documento que garantiu aos religiosos a posse das terras lhes concedeu o monopólio de culto público e de formação de confrarias em torno dos principais santos da Ordem: São Francisco e Santo Antônio. Passado um século, o edifício de apenas um piso, tornou-se pequeno e insuficiente para o número de religiosos, e em 1748 iniciou-se a construção do atual convento, finalizado apenas em 1780. Em torno do claustro havia sete capelas internas, lá se encomendavam os corpos dos frades mortos que eram enterrados no corredor. Desde 1650, funcionavam no convento cursos de filosofia e teologia para formação intelectual dos religiosos. Em junho de 1776, os cursos superiores ministrados na instituição ganham o status de “universitários”. Além dos frades, leigos e alunos do seminário São José dividiam-se nas aulas de retórica, grego, hebraico, filosofia, história eclesiástica, teologia dogmática, moral e exegética. As aulas eram realizadas na Sala do Capítulo, no primeiro andar. Alguns frades que viveram no convento tiveram destaque em diversas áreas do conhecimento: na história, frei Vicente do Salvador; na botânica, frei Mariano da Conceição Velloso, autor da Flora Fluminense; na pintura, frei Francisco Solano Benjamin. A escola não formava exclusivamente religiosos, recebeu leigos e esteve aberta a estudos experimentais. O convento tornou-se referência pela sua atuação evangelizadora, convertendo-se em base para os franciscanos em sua expansão para o sul. Também desempenhou um papel fundamental na independência do Brasil, já que sediou reuniões políticas em torno da independência, promovidas por frei Sampaio, inclusive com a participação de d. Pedro. Sampaio é autor do discurso do Fico e do esboço da primeira constituição do Império Brasileiro. Foi também nas dependências do convento que Vitor Meirelles pintou o célebre quadro a Batalha do Riachuelo, período em que abriu o teto do aposento para melhorar a iluminação. A portaria do governo imperial de 19 de março de 1855, que proibia a entrada de noviços em todas as ordens religiosas, foi determinante para a decadência do convento. Neste período, o espaço foi ocupado pelo Arquivo Público, que lá permaneceu até o ano de 1872. O Ministério da Justiça também instalou o júri em 1855 e por fim, o Sétimo Batalhão de Intendência ocupou boa parte do edifício, onde permaneceu entre 1885 e 1901. Somente a partir da instauração da República, com a separação entre Igreja e Estado e a chegada de franciscanos alemães, o convento de Santo Antônio voltaria a viver um período próspero.

[6] BULHAS ENTRE TERCEIROS E FRADES: em 20 de março 1619, Luis de Figueiredo e sua mulher d. Antonia Carneiro fundaram a Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro. Como era habitual na época, a Ordem convivia nos espaços da Igreja de Santo Antônio, onde fundou um pequeno santuário em homenagem à Nossa Senhora da Conceição. Em meados do século XVII, os terceiros começaram a construir a Igreja de São Francisco da Penitência no terreno do Convento de Santo Antônio. A presença dos irmãos terceiros movimentou a vida social e religiosa no morro de Santo Antônio com suas festas e procissões. As divergências entre os religiosos do convento e os irmãos da Ordem Terceira de São Francisco manifestaram-se com maior ou menor força ao longo do século XVIII, com crescentes reivindicações dos terceiros por maior autonomia, questionando o direito dos religiosos legislarem sobre as questões referentes às regras e estatutos da fraternidade. O primeiro conflito de grandes proporções envolvendo os irmãos da ordem terceira e os religiosos do Convento de Santo Antônio ocorreu em 1701, durante a visita canônica do padre provincial frei Miguel de São Francisco. De acordo com o padre, os terceiros franciscanos eram insubordinados ao ministro, não prestavam assistência às reuniões, entre outras coisas. Visando resolver tais problemas, o prelado provincial formulou uma série de pontos sobre a observância às regras e aos estatutos. O décimo quinto abordava a delicada questão, a qual se opunham os terceiros, da prerrogativa que tinham os prelados provinciais de correção e castigo do ministro e mesa da ordem terceira. O embate entre os diversos ordenamentos jurídicos, como os estatutos locais e os gerais, e a disputa entre autoridades, como os ministros e os prelados, eram motivos de discórdia entre os terceiros e os religiosos. Durante o ministério de Francisco Seixas Fonseca, entre 1715 e 1719, agravaram-se as contendas (bulhas), que culminaram na cisão da Ordem em 1720. O partido liderado por Francisco Seixas Fonseca passa a ocupar um hospício erigido no centro da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, reivindica no Tribunal da Relação direito à capela anexa ao convento de Santo Antônio da qual haviam sido expulsos. O ouvidor decide favoravelmente aos terceiros expulsos do convento. Entretanto, a resistência dos frades impediu a retomada do prédio. Em 1725, os terceiros insubmissos são impedidos de praticarem suas cerimônias no hospício e obrigados à obediência ao provincial e ao comissário visitador do convento. O líder da mesa dissidente é preso e desterrado em Pernambuco e a unidade da associação restabelecida.

[7]COMISSÁRIOS DOS TERCEIROS: o comissário visitador era o dirigente máximo da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco no que dizia respeito aos assuntos eclesiásticos. Era designado pelo prelado provincial, funcionando como delegado deste. Os irmãos terceiros deveriam submeter-se à autoridade religiosa do comissário visitador, seu superior imediato no plano espiritual, que os orientaria nos exercícios espirituais condizentes com aquela regra. O comissário na ordem terceira era eleito em definitivo pelo voto provincial e mais religiosos. As tarefas referentes ao comissário contemplavam os sermões, práticas, profissões de irmãos e outros exercícios espirituais. Também tomava parte nas reuniões da mesa. Em relação às eleições, caberia aos religiosos escolherem o comissário de determinada ordem terceira, a partir de uma lista prévia elaborada pelos irmãos. Os estatutos de 1801 da Ordem Terceira da Penitência do Rio de Janeiro reforçavam o poder dos terceiros, em seu artigo 48, que definia que estes tinham o direito de requerer aos religiosos um comissário espiritual da Ordem, mas quando este não fosse a contento, poderiam eleger um irmão clérigo secular, desde que aprovado pelo prelado ou através de bula papal.

[8]ORDEM TERCEIRA DA PENITÊNCIA: associação religiosa formada por leigos, organizados em torno das ideias e preceitos de São Francisco de Assis. Norteia-se pela utopia franciscana que prega a prática da pobreza, a fraternidade e a igualdade. O surgimento das ordens terceiras, a partir do século XII, está relacionado a um contexto de renovação do exercício da espiritualidade, inspirada em um cristianismo que valoriza o que teriam sido as práticas dos primeiros discípulos de Cristo, resultando em uma maior participação dos leigos. Foi a primeira das ordens terceiras, intitulada de Ordem da Penitência de São Francisco. Recebeu reconhecimento formal da cúria romana por meio do Memoriale propositi fratum et sororum de poenitentia, em 1221, considerada a primeira Regra da Ordem. Segundo esta, os “irmãos e irmãs da penitência”, como eram conhecidos, deveriam manter a austeridade nos trajes, privar-se de bailes, banquetes e ajuntamentos solenes, observar a prática do jejum em alguns dias da semana, além de, regularmente, frequentar os sacramentos da confissão e da comunhão. Em 18 de agosto de 1289, através da bula Supra montem, o papa Nicolau IV lhe conferiu reconhecimento canônico como Ordem Terceira de São Francisco de Assis. As primeiras ordens terceiras franciscanas chegaram ao Brasil ainda no século XVII. Em 20 de março de 1619, foi fundada a Ordem Terceira de São Francisco Assis na cidade do Rio de Janeiro. Além das regras que eram comuns a todas as filiais da mesma ordem, havia os estatutos particulares de cada associação que variavam conforme a localidade. Para ingressar na associação o candidato devia apresentar informações sobre seu ofício, estado e “qualidades”; enquanto às mulheres exigia-se autorização de seus maridos. De maneira geral, as exigências relativas à entrada de um membro se baseavam nos critérios de pureza étnica, excluindo-se os descendentes de negros, judeus e cristãos novos, embora o último caso nem sempre tenha ocorrido. O estatuto dos terceiros franciscanos do Rio de Janeiro, de 1801, aboliu o impedimento ao ingresso dos judeus convertidos. É importante ressaltar que esses critérios não incluíam os descendentes de escravos africanos. Após o processo de seleção, o membro passava por um período de preparação para profissão religiosa denominado noviciado. Durante o noviciado, o indivíduo era submetido a exercícios espirituais, além de ser instruído nas regras da associação. Dentro da hierarquia da ordem, os postos de comissário visitador e irmão ministro representavam os mais altos cargos nos planos espiritual e temporal, respectivamente. Ao comissário cabia os sermões, práticas, profissões de irmãos e mais exercícios espirituais. Somando-se a isso, o comissário visitador participava como membro votante nas reuniões convocadas pela mesa administrativa da ordem. O fracionamento da Ordem Terceira da Penitência em dois partidos antagônicos implicou a formação de duas mesas administrativas, uma favorável à direção dos religiosos do convento de Santo Antônio e outra composta pelos que apoiavam Francisco de Seixas Fonseca, que havia sido irmão ministro entre 1715 e 1719. O segundo grupo discordava da ingerência dos religiosos na associação e pleiteava a equiparação do estatuto desta ao das irmandades laicas. Expulsos do convento, refugiaram-se no hospício erigido na rua do Rosário, pleiteado desde 1716 por Francisco de Seixas Fonseca. Entre 1721 e 1724, a administração da ordem esteve dividida entre a capela contígua ao convento e o hospício.

[9]RELAÇÃO DA BAHIA: também conhecido como Tribunal da Relação do Brasil (até a criação da Relação do Rio de Janeiro em 1751), foi o primeiro tribunal de 2ª instância no Brasil, somando-se às Relações do Porto e de Goa, além da Casa de Suplicação de Lisboa, como as principais instituições judiciais superiores do império português. Apesar de criado efetivamente em 1609, desde 1588 já se pretendia instalar uma corte de apelação nos territórios americanos, quando se redigiu o primeiro regimento da instituição, que foi a base do regulamento de 1609, dentro do plano de modernização e legalização da burocracia estatal empreendido por Felipe II para todo o império luso-espanhol. A princípio funcionou por menos de vinte anos, até 1826, sendo reestabelecido em 1652, tendo encerrado suas atividades aparentemente durante o período em que tanto a Bahia quanto Pernambuco foram invadidos e comandados pelos holandeses. A principal atribuição da Relação consistia em julgar a 2ª instância, já que todos os recursos de casos no Brasil eram encaminhados para Lisboa, o que era demorado e custoso, a fim de melhorar e acelerar a justiça entre os colonos, além de contribuir para a centralização, pelo governo metropolitano, da burocracia e aparelho judicial colonial. Era também uma forma de a Coroa tomar conta mais amiúde da colônia, diminuindo os poderes dos donatários. Órgão colegiado, na segunda fase, o Tribunal contava com oito desembargadores, entre eles um chanceler, um ouvidor-geral e um procurador da Coroa, além de oficiais, e o presidente seria o vice-rei geral do Brasil, e estava subordinado diretamente à Casa de Suplicação de Lisboa, que serviu de modelo para sua organização. A seleção desse conjunto de letrados formados e treinados para a função foi uma tarefa difícil para a Coroa, que precisava confiar nesses membros para representá-la e ao mesmo tempo torná-los distintos e respeitáveis pela população muito avessa a obedecer as leis e a ordem, além da pequena elite colonial, que já dera sinais de insatisfação com a presença da justiça da metrópole passando por cima da local. A maior parte das ações que chegavam a Relação eram processos criminais (crimes passionais e de sedução, além de assassinatos pelos mais diversos motivos), disputas sucessórias, disputas cíveis (como brigas por terras e propriedades, contestações de contratos de dízimos, repressão ao contrabando, e ao comércio ilegal de pau-brasil), além de questões de tesouro (como fraudes e evasão fiscal). Os casos tratados prioritariamente eram os que envolviam diretamente a Coroa e a Casa Real. Desse modo, pode-se dizer que o Tribunal da Relação do Brasil (ou da Bahia) exerceu não somente funções judiciais (atuando ainda como juízes itinerantes pelas capitanias e responsáveis por investigações especiais), mas também funções administrativas, informando e aconselhando o rei sobre os acontecimentos e negócios da colônia, conduzindo devassas e administrando, por exemplo, missões especiais como a coleta de 1 % de impostos sobre as vendas para a construção de igrejas ou obras pias.  

[10]JOÃO V, D. (1689-1750): conhecido como “o Magnânimo”, d. João V foi proclamado rei em 1706 e teve que administrar as consequências produzidas na colônia americana pelo envolvimento de Portugal na Guerra de Sucessão Espanhola (1702-1712), a perda da Colônia do Sacramento e a invasão de corsários franceses ao Rio de Janeiro (1710-11). Se as atividades corsárias representavam um contratempo relativamente comum à época e nas quais se envolviam diversas nações europeias, a ocupação na região do Rio da Prata seria alvo de guerras e contendas diplomáticas entre os dois países ibéricos durante, pelo menos, um século, já que as colônias herdariam tais questões fronteiriças depois da sua independência. As guerras dos Emboabas (1707-09) na região mineradora e dos Mascates (1710-11) em Pernambuco completaram o quadro de agitação desse período. Entre as medidas políticas mais expressivas de seu governo, encontram-se: os tratados de Utrecht (1713 e 1715), selando a paz com a França e a Espanha respectivamente, e o tratado de Madri (1750), que objetivava a demarcação dos territórios lusos e castelhanos na América, intermediado pelo diplomata Alexandre de Gusmão. Este tratado daria à colônia portuguesa na América uma feição mais próxima do que atualmente é o Brasil. Foi durante seu governo que se deu o início da exploração do ouro, enriquecendo Portugal e dinamizando a economia colonial. O fluxo do precioso metal contribuiu para o fausto que marcou seu reinado, notadamente no que dizia respeito às obras religiosas, embora parte dessa riqueza servisse também para pagamentos de dívidas, em especial com a Inglaterra. Mesmo assim, as atividades relacionadas às artes receberam grande incentivo, incluindo-se aí a construção de elaborados edifícios (Biblioteca de Coimbra, Palácio de Mafra, Capela de São João Batista – erguida em Roma com financiamento luso e, posteriormente, remontada em Lisboa) e o desenvolvimento do peculiar estilo barroco, que marcou a ourivesaria, a arquitetura, pintura e esculturas do período tanto em Portugal quanto no Brasil. Seu reinado antecipa a penetração das ideias ilustradas no reino, com a fundação de academias com apoio régio, a reunião de ilustrados, a influência da Congregação do Oratório, em contrapartida à Companhia de Jesus.

[11]NORONHA, AYRES DE SALDANHA DE ALBUQUERQUE COUTINHO MATOS (1681-1756): nascido em Lisboa, era membro de uma das principais famílias da corte portuguesa e foi homem-gentil da câmara do infante d. António, quinto filho de Pedro II de Portugal. Prestou serviços militares no norte da África e em Portugal. Nomeado governador e capitão-general do Rio de Janeiro por carta patente de 3 de janeiro de 1719, Ayres de Saldanha assumiu a administração a 13 de maio do mesmo ano, cargo que ocupou até 1725. O período de seu governo coincide com uma crescente valorização da capitania como centro de atividades mercantis, já que do seu porto escoava-se o ouro das Minas. A localização estratégica do porto também atraia muitos estrangeiros que navegavam pelo Atlântico Sul, causando preocupação à metrópole com a segurança e a conservação da capitania. Em carta ao rei, no ano de 1719, Ayres de Saldanha, aflito com a quantidade de navios no entorno da cidade, defende que se corte relações com estrangeiros, por conta da incidência de piratas. Em decorrência da contínua entrada e saída de navios, do aumento das transações comerciais e da grande circulação de pessoas, a alfândega tornou-se alvo de atividades ilícitas como contrabando e sonegação de impostos. As precárias instalações físicas da alfândega não comportavam todo o material a ser armazenado, o que facilitava os furtos, além de faltarem guardas e outros funcionários para garantir o controle da arrecadação. Ciente de tais problemas, o governador forneceu, já em seu primeiro ano, parecer ao Conselho Ultramarino, segundo o qual defendia a instalação de balança apropriada em um lugar adequado, sob orientação de um juiz nomeado especificamente para tal função, pois sem tal providência, a arrecadação de fazendas continuaria a sofrer prejuízos. Outra importante medida de seu governo foi a adução das águas do rio Carioca, prolongando as obras até o campo de Santo Antônio, atual largo da Carioca. Inspirado no aqueduto das Águas Livres de Lisboa, ligava o morro do Desterro (Santa Teresa) até o morro de Santo Antônio. Concluída a obra em 1723, a fonte da Carioca passaria a ser abastecida com suas águas. O conflito entre espanhóis e portugueses na colônia do Sacramento, que estava sob jurisdição da capitania do Rio de janeiro, também foi uma preocupação constante durante sua administração.

 

 

Pureza de sangue

Carta dos membros da ordem terceira de Nossa Senhora do Carmo ao governador de Vitoria, Francisco Alberto Rubim, informando que o que Manoel Alvares Thomé não pode ser aceito como membro da Ordem, pois não possui qualidades necessárias. É acusado de ter o sangue impuro, já que é filho de uma índia com um negro, com o agravante de sua mãe ter sido prostituta.

Conjunto Documental:Espírito Santo. Ministério do Reino. Correspondência do presidente da província
Notação: IJJ9 356
Datas-limite:1808 - 1820
Título do fundo: Série Interior
Código do fundo: AA
Argumento de pesquisa: Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (Espírito Santo)
Data do documento: 17 de fevereiro de 1819
Folha(s): 251
Local: Vitória

Ilustríssimo Senhor Governador,

Segundo o capítulo 14 dos institutos desta Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo[1], não pode ser admitido nela por irmão, menos professor na mesma aquela pessoa, a quem faltar a pureza de sangue[2] com raça de judeu[3]mouro[4], e de mulato[5], por igual modo que qualquer outra infame de fato e de direito. O pretendente Manoel Alvares Thomé está nestas circunstâncias, por ser filho de uma mãe, que tem sangue de índio misturado com o de negro, a qual viveu muitos anos prostituta, e nasceu de uma mulher quase em tudo semelhante, que afinal teve um preto cativo por consorte. Por estes princípios é que o pretendente Manoel Alvares Thomé já foi por muitas vezes repelido pelas nossas Mesas[6] dos anos passados, e se ele não calasse estes fatos, e motivos de repulsas à muito venerável Ordem da Corte do Rio de Janeiro persuadimo-nos que não tivera obtido a profissão que alega. Respeitamos muito a patente que nos apresentou, porém por ser alcançada por obrepção e subrepção, a julgamos sem efeito. Tendo-nos já dado parte ao reverendíssimo provincial de que não recebemos o dito pretendente pelas razões já declaradas, o mesmo reverendíssimo nos respondeu o que consta do instrumento que com esta nossa resposta fazemos ver o que podemos informar a vossa senhoria por bem do respeitável ofício de 9 do corrente que tivemos por honra receber. 

Deus Guarde a vossa senhoria 

Consistório da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em mesa vila de Vitória[7], 17 de fevereiro 1819 

De Vossa Senhoria reverentes súbditos

Frei Alexandre de Santa Gertrudes - Comissário; Antonio de Aguiar Brandão - Prior; Manoel de Siqueira de Sá - Co prior jubilado; Antonio Pinto Ribeiro; padre Manoel Pinto da Silveira Guimarães; padre Joaquim José de Santana; João Ribeiro das Chagas; Narciso José Teixeira; Manoel Alves Buri; Francisco Assis de Andrade; José do Couto Teixeira; Inácio Salles.

 

 

[1]ORDEM DO CARMO: a ordem dos Carmelitas surgiu no século XII, por volta de 1177, na região de Monte Carmelo, na Palestina, região onde o profeta Elias teria se estabelecido, seguindo uma vida eremítica de oração e silêncio. Sua migração para o Ocidente ocorreu no século XIII, quando foi elevada à categoria de ordem mendicante pelo papa Inocêncio IV. Além de tomar como exemplo o ideal de vida simples representado pelo profeta, adota a Virgem Maria com símbolo. A Ordem é dividida em quatro segmentos: a dos Frades, Ordem Primeira; a das Monjas, Ordem Segunda; e a dos Terceiros, os quais são divididos em seculares, sendo compostos também por leigos, e por fim os regulares. Os Carmelitas passaram, na Espanha, por um movimento de renovação com Santa Tereza de Prea e São João da Cruz no século XVI, o que ocasionou a divisão da Ordem em Carmelitas Calçados, que seguiam a norma antiga, e os Carmelitas Descalços, seguidores do novo movimento. A Ordem Terceira do Carmo, ramo composto pelo grupo de membros leigos dos carmelitas da Antiga Observância ou Carmelitas Calçados, tem como finalidade ajudar os seus membros em âmbito universal, ou seja, independe da localidade da filial, esteja ela na América portuguesa ou em Portugal. Entretanto, para serem recebidos nas diferentes localidades, os seus membros deveriam pagar uma taxa. A ajuda da Ordem não se limitava apenas ao aspecto espiritual, mas também ao material, devendo os membros contribuírem com tais obrigações. A Ordem veio para o Brasil com a aprovação do cardeal d. Henrique, rei de Portugal, em 1580. O objetivo inicial era fortalecer a colonização da Paraíba, como forma de evitar possíveis invasões de franceses e outros estrangeiros através da Baía da Traição. Apesar do fracasso dos cinco primeiros freis, a Ordem Carmelita se manteve na província, fundando, em 1583, o primeiro convento em Olinda, seguido pelas fundações da Bahia (1586), Santos (1589), Rio de Janeiro (1590) e São Paulo (1596). Por sua vez, a instalação das Ordens Terceiras, durante o período colonial, estava relacionada à fundação dos conventos da Ordem Primeira do Carmo. Para entrar na Ordem Terceira era necessário entregar um formulário contendo informações da sua vida e costumes ao secretário da congregação. Além disso, eram excluídos da Ordem pessoas de baixa condição e que possuíssem ascendência negra, escrava, forra ou mulata. Excluíam-se também adeptos à religião judaica. O processo seletivo para o ingresso nessas ordens eram aqueles colocados pelo estatuto de “limpeza de sangue”. No caso das mulheres, era necessário que apresentassem uma licença de seus maridos para ingressarem à ordem, caso fossem solteiras a aprovação era de seu pai. Após a aprovação era preciso que o futuro membro passasse por um período denominado noviciado, no qual eram ensinadas as regras da associação e educação religiosa.

[2]PUREZA DE SANGUE: desde o século XVI, o critério de “pureza de sangue” era utilizado na admissão de indivíduos em ordens religiosas e militares, bem como nas eleições para ocupação de cargos públicos e eclesiásticos, na península Ibérica. Adotada, primeiramente, pela Espanha com o Estatuto de Exclusão, publicado em 1449 na cidade de Toledo, tal critério impedia os recém-convertidos à fé católica e os considerados de “sangue infecto” (judeus, mouros e negros) de ocuparem cargos municipais. Apesar do seu limitado alcance, é considerado o percussor dos estatutos de limpeza de sangue na região ibérica. Buscava-se, com isso, o isolamento dos cristãos-novos na vida social daquela comunidade, alijando-os de cargos públicos em benefício dos católicos. Colocar em prática tais princípios significava, além de excluir esses grupos dos postos oficiais do estado e das ordens religiosas, suprir a deficiência dos cofres públicos, haja vista que Igreja e Estado se beneficiavam com cobranças de taxas e confiscos de bens dos cristãos-novos. Em Portugal, a criação do Tribunal do Santo Ofício, em 1536, representa o marco inicial da discriminação aos judeus na legislação portuguesa, ao oficializar a perseguição às práticas judaicas. As desqualificações limitavam-se, inicialmente, a indivíduos descendentes de judeus e incluíam ainda mouros e hereges, podendo-se considerar tanto um preconceito de cunho racial como religioso. Com o tempo, os estatutos de pureza de sangue passam a estigmatizar outros grupos além dos judeus, como ciganos, índios, negros e aqueles que possuíssem “defeito mecânico”, isto é, exercessem trabalhos braçais. Em princípios do século XVII, nota-se uma discriminação legalizada e específica contra negros e mulatos, em razão da associação à escravidão. No Brasil, as ordens terceiras, que aqui se estabeleceram, mantiveram uma segregação em relação à admissão de negros e mulatos. É interessante pontuar que havia a possibilidade de “limpeza do sangue” através de prestação de serviços para a Coroa. No período pombalino, a discriminação contra os cristãos novos, mouros, judeus foi extinta da legislação, o que não significa que o preconceito contra esses grupos tenha deixado de existir. A abolição dos critérios de limpeza de sangue se insere em um contexto de mudanças sociais, políticas e econômicas que passava a Europa. Em Portugal, o reformismo ilustrado de Pombal, quando ministro de d. José I, foi determinante para essas mudanças. Vale ressaltar que, a aplicação da doutrina de pureza de sangue se estendeu ao e aos domínios ultramarinos, ainda que não nos mesmos moldes do verificado em Portugal. Os estatutos de pureza de sangue, portanto, podem ser considerados, para alguns autores, a expressão legal do racismo de Estado e da Igreja, tendo-se em conta que “entre os séculos XVII e XVIII o racismo ainda não estava respaldado na "racionalidade científica", mas pautava-se na exclusão social e religiosa”, tendo como princípio a herança dos comportamentos, passada pelo sangue às gerações (RAMINELLI, R. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. 2015, p.19)

[3]HEBREUS: povo‌ ‌de‌ ‌origem‌ ‌semita‌ ‌-‌ ‌indivíduos‌ ‌descendentes‌ ‌dos‌ ‌povos‌ ‌e‌ ‌culturas‌ ‌oriundas‌ ‌da‌ ‌Ásia‌ ‌ocidental‌ ‌e,‌ ‌portanto,‌ ‌pertencentes‌ ‌à‌ ‌mesma‌ ‌família‌ ‌etnográfica‌ ‌e‌ ‌lingüística,‌ ‌como‌ ‌os‌ ‌assírios,‌ ‌os‌ ‌aramaicos,‌ ‌os‌ ‌fenícios‌ ‌e‌ ‌os‌ ‌árabes‌ ‌-,‌ ‌os‌ ‌hebreus,‌ ‌segundo‌ ‌os‌ ‌primeiros‌ ‌relatos,‌ ‌habitavam‌ ‌o‌ ‌sul‌ ‌da‌ ‌Mesopotâmia.‌ ‌Eram‌ ‌pastores‌ ‌seminômades,‌ ‌organizados‌ ‌em‌ ‌pequenos‌ ‌grupos,‌ ‌e‌ ‌que‌ ‌tinham‌ ‌na‌ ‌religião‌ ‌judaica‌ ‌a‌ ‌sua‌ ‌principal‌ ‌característica,‌ ‌aquilo‌ ‌que‌ ‌os‌ ‌identificava‌ ‌como‌ ‌povo.‌ ‌O‌ ‌judaísmo‌ ‌-‌ ‌primeira‌ ‌religião‌ ‌monoteísta‌ ‌-,‌ ‌os‌ ‌diferenciava‌ ‌sobremaneira‌ ‌dos‌ ‌outros‌ ‌povos‌ ‌que‌ ‌também‌ ‌habitavam‌ ‌essa‌ ‌conturbada‌ ‌região‌ ‌e‌ ‌praticavam‌ ‌o‌ ‌politeísmo.‌ ‌Há‌ ‌aproximadamente‌ ‌2000‌ ‌anos‌ ‌a.C.,‌ ‌os‌ ‌hebreus‌ ‌radicaram-se‌ ‌no‌ ‌vale‌ ‌do‌ ‌rio‌ ‌Jordão,‌ ‌na‌ ‌Palestina.‌ ‌A‌ ‌partir‌ ‌dessa‌ ‌ocupação,‌ ‌deixam‌ ‌o‌ ‌seu‌ ‌estado‌ ‌tribal‌ ‌para‌ ‌assumir‌ ‌uma‌ ‌identidade‌ ‌nacional,‌ ‌onde‌ ‌a‌ ‌terra,‌ ‌ ‌tornar-se-ia‌ ‌outro‌ ‌elemento‌ ‌de‌ ‌união‌ ‌desse‌ ‌povo.‌ ‌Por‌ ‌volta‌ ‌do‌ ‌ano‌ ‌70‌ ‌d.C.,‌ ‌os‌ ‌romanos‌ ‌dominaram‌ ‌a‌ ‌região,‌ ‌destruindo‌ ‌sua‌ ‌principal‌ ‌cidade,‌ ‌Jerusalém. A‌ ‌partir‌ ‌de‌ ‌então,‌ ‌os‌ ‌hebreus, expulsos,‌ ‌dispersaram-se‌ ‌pelo‌ ‌mundo‌ ‌–‌ ‌o que ficaria conhecido como‌ ‌diáspora‌ ‌judaica.‌ ‌Foi‌ ‌no‌ período‌ ‌romano‌ ‌que‌ ‌o‌ ‌etnônimio‌ ‌passou‌ ‌a‌ ‌ser‌ ‌utilizado‌ ‌também‌ ‌para‌ ‌referir-se‌ ‌aos‌ ‌judeus‌,‌ ‌um‌ ‌grupo‌ ‌étnico‌ ‌e‌ ‌religioso‌ ‌de‌ ‌ascendência‌ ‌hebraica.‌ ‌Durante‌ ‌a‌ ‌diáspora,‌ ‌os‌ ‌hebreus‌ ‌migraram‌ ‌para‌ ‌outras‌ ‌regiões‌ ‌do‌ ‌globo,‌ ‌sobretudo‌ ‌a‌ ‌Ásia‌ ‌Menor,‌ ‌África‌ ‌e‌ ‌o‌ ‌sul‌ ‌da‌ ‌Europa,‌ ‌onde‌ ‌formaram‌ ‌comunidades‌ ‌judaicas‌ ‌no‌ ‌intento‌ ‌de‌ ‌manter‌ ‌suas‌ ‌crenças‌ ‌e‌ ‌tradições.‌ ‌No‌ ‌mundo‌ ‌ibérico,‌ ‌sua‌ ‌presença‌ ‌sempre‌ ‌foi‌ ‌bastante‌ ‌conturbada.‌ ‌Constantemente‌ ‌sujeitos‌ ‌a‌ ‌perseguições,‌ ‌os‌ ‌judeus‌ ‌eram‌ ‌difamados‌ ‌como‌ ‌usurários,‌ ‌assassinos,‌ ‌ladrões,‌ ‌feiticeiros,‌ ‌etc.‌ ‌Expulsos‌ ‌pela‌ ‌Inquisição‌ ‌espanhola,‌ ‌em‌ ‌1492,‌ ‌também‌ ‌enfrentaram‌ ‌a‌ ‌Inquisição‌ ‌em‌ ‌‌Portugal‌,‌ ‌após‌ ‌o‌ ‌casamento‌ ‌entre‌ ‌‌d.‌ ‌Manoel‌ ‌I‌ ‌e‌ ‌Isabel,‌ ‌princesa‌ ‌espanhola‌ ‌filha‌ ‌dos‌ ‌reis‌ ‌católicos.‌ ‌Entre‌ ‌as‌ ‌diversas‌ ‌leis‌ ‌contra‌ ‌os‌ ‌judeus,‌ ‌que‌ ‌foram‌ ‌publicadas‌ ‌nessa‌ ‌época,‌ ‌destaca-se‌ ‌o‌ ‌édito‌ ‌de‌ ‌expulsão‌ ‌de‌ ‌d.‌ ‌Manoel‌ ‌I,‌ ‌publicado‌ ‌em‌ ‌1496,‌ ‌que‌ ‌obrigava‌ ‌os‌ ‌judeus‌ ‌e‌ ‌muçulmanos‌ ‌a‌ ‌sair‌ ‌do‌ ‌país‌ ‌ou‌ ‌a‌ ‌converter-se‌ ‌ao‌ ‌cristianismo.‌ ‌A‌ ‌partir‌ ‌de‌ ‌então,‌ ‌milhares‌ ‌de‌ ‌judeus‌ ‌foram‌ ‌forçados‌ ‌a‌ ‌adotar‌ ‌a‌ ‌fé‌ ‌católica,‌ ‌tornando-se‌ ‌os‌ ‌chamados‌ ‌‌cristãos-novos‌,‌ ‌mudando,‌ ‌inclusive,‌ ‌seus‌ ‌nomes,‌ ‌embora‌ ‌muitos‌ ‌tenham‌ ‌conservado‌ ‌em‌ ‌segredo‌ ‌a‌ ‌sua‌ ‌identidade,‌ ‌sendo‌ ‌denominados‌ ‌criptojudeus.‌ ‌Nas‌ ‌várias‌ ‌ondas‌ ‌de‌ ‌antissemitismo‌ ‌que‌ ‌atingiram‌ ‌os‌ ‌judeus,‌ ‌seus‌ ‌bens‌ ‌foram‌ ‌confiscados‌ ‌e‌ ‌suas‌ ‌mulheres‌ ‌condenadas‌ ‌à‌ ‌fogueira‌ ‌como‌ ‌hereges.‌ ‌Com‌ ‌relação‌ ‌à‌ ‌América‌ ‌portuguesa,‌ ‌os‌ ‌hebreus‌ ‌aqui‌ ‌aportaram‌ ‌já‌ ‌em‌ ‌1503,‌ ‌na‌ ‌condição‌ ‌de‌ ‌cristãos-novos,‌ ‌impulsionando‌ ‌o‌ ‌processo‌ ‌de‌ ‌colonização,‌ ‌com‌ ‌o‌ ‌aval‌ ‌da‌ ‌Coroa‌ ‌portuguesa.‌ ‌Desde‌ ‌1535,‌ ‌era‌ ‌prática‌ ‌Portugal‌ ‌deportar‌ ‌para‌ ‌a‌ ‌América‌ ‌criminosos‌ ‌de‌ ‌todos‌ ‌os‌ ‌tipos‌ ‌e,‌ ‌com‌ ‌a‌ ‌introdução‌ ‌do‌ ‌Santo‌ ‌Ofício‌ ‌no‌ ‌Reino,‌ ‌que‌ ‌teve‌ ‌seu‌ ‌primeiro‌ ‌Auto-de-fé‌ ‌em‌ ‌1540,‌ ‌os‌ ‌judaizantes‌ ‌-‌ ‌assim‌ ‌denominados‌ ‌aqueles‌ ‌que‌ ‌secretamente‌ ‌praticavam‌ ‌a‌ ‌fé‌ ‌judaica,‌ ‌mesmo‌ ‌na‌ ‌condição‌ ‌de‌ ‌cristãos-novos‌ ‌-‌ ‌também‌ ‌seriam‌ ‌degredados‌ ‌para‌ ‌o‌ ‌além-mar.‌ ‌Muitos‌‌ ‌vieram‌ ‌fugidos‌ ‌da‌ ‌Inquisição‌, mesmo antes de uma acusação formal, ‌pois o tribunal‌ ‌foi‌ ‌implacável‌ ‌na‌ ‌busca‌ ‌da‌ ‌origem‌ ‌étnica‌ ‌dos‌ ‌portugueses.‌ ‌Procuravam ‌nos‌ ‌novos‌ ‌territórios‌ ‌ultramarinos‌ ‌um‌ ‌refúgio.‌ ‌No‌ ‌entanto,‌ ‌em‌ ‌fins‌ ‌do‌ ‌século‌ ‌XVI,‌ ‌a‌ ‌Inquisição‌ ‌se‌ ‌fez‌ ‌presente‌ ‌também‌ ‌na‌ ‌América‌ ‌portuguesa,‌ através das visitas de inquisidores do Tribunal do Santo Ofício português, ‌perseguindo‌ ‌e‌ ‌processando‌ ‌cristãos-novos‌ ‌por‌ ‌quaisquer‌ ‌condutas‌ ‌que‌ ‌ferisse‌ ‌os‌ ‌dogmas‌ ‌da‌ ‌Igreja‌ ‌Católica,‌ ‌entre‌ ‌elas‌ ‌as‌ ‌práticas‌ ‌de‌ ‌tradições‌ ‌e‌ ‌ritos‌ ‌judaicos.‌ ‌A‌ ‌partir‌ ‌da‌ ‌primeira‌ ‌visita‌‌ ‌em‌ ‌1591,‌ na Bahia, ‌os‌ ‌cristãos-novos,‌ ‌sendo‌ ‌eles‌ ‌sinceramente‌ ‌convertidos‌ ‌ou‌ ‌não,‌ ‌enfrentaram‌ ‌um‌ ‌clima‌ ‌de‌ ‌denuncismo,‌ ‌preconceito‌ ‌e‌ ‌hostilidade.‌ ‌Pode-se‌ ‌afirmar,‌ ‌contudo,‌ ‌que‌ ‌as‌ ‌perseguições‌ ‌que‌ ‌teriam‌ ‌se‌ ‌iniciado‌ ‌no‌ ‌século‌ ‌XVIII‌ ‌enfrentaram‌ ‌muitas‌ ‌dificuldades,‌ ‌tendo‌ ‌em‌ ‌vista‌ ‌à‌ ‌ocupação‌ ‌territorial‌ ‌bastante‌ ‌espalhada‌ ‌feita‌ ‌pelos‌ ‌cristãos-novos‌ ‌na‌ ‌América‌ ‌portuguesa,‌ ‌levando‌ ‌a‌ ‌um‌ ‌número‌ ‌reduzido‌ ‌de‌ ‌prisões.‌ ‌Anita‌ ‌Novinsky‌ ‌(1972)‌ ‌também‌ ‌sustenta‌ ‌a‌ ‌ideia‌ ‌de‌ ‌que‌ ‌o‌ ‌interesse‌ ‌econômico‌ ‌da‌ ‌metrópole,‌ ‌ou‌ ‌seja,‌ ‌o‌ ‌peso‌ ‌das‌ ‌atividades‌ ‌financeiras‌ ‌desenvolvidas‌ ‌pelos‌ ‌cristãos-novos‌ ‌e‌ ‌sua‌ ‌importância‌ ‌na‌ ‌ocupação‌ ‌do‌ ‌território,‌ ‌contribuiu‌ ‌para‌ ‌as‌ ‌poucas‌ ‌detenções.‌ ‌Os‌ ‌judeus‌ ‌viveriam‌ ‌um‌ ‌período‌ ‌de‌ ‌relativa‌ ‌liberdade‌ ‌religiosa‌ ‌durante‌ ‌o‌ ‌período‌ ‌de‌ ‌ocupação‌ ‌holandesa‌ ‌no‌ nordeste brasileiro ‌(1630-1654).‌ ‌Algumas‌ ‌famílias‌ ‌de‌ ‌origem‌ ‌lusa,‌ ‌residentes‌ ‌nos‌ ‌Países‌ ‌Baixos,‌ ‌migraram‌ ‌para‌ ‌o‌ ‌nordeste,‌ ‌especialmente‌ ‌para‌ ‌‌Pernambuco‌,‌ ‌desfrutando‌ ‌da‌ ‌liberdade‌ ‌concedida‌ ‌então,‌ ‌sobretudo‌ ‌no‌ ‌período‌ ‌de‌ ‌Maurício‌ ‌de‌ ‌Nassau.‌ ‌Com‌ ‌a‌ ‌expulsão‌ ‌dos‌ ‌holandeses,‌ ‌muitos‌ ‌judeus‌ regressaram‌ ‌à‌ ‌Holanda,‌ ‌outros‌ ‌ajudaram‌ ‌na‌ ‌fundação‌ ‌de‌ ‌Nova‌ ‌Amsterdam,‌ ‌atual‌ ‌cidade‌ ‌de‌ ‌Nova‌ ‌Iorque.‌ ‌A‌ ‌diáspora‌ ‌judaica‌ ‌chegou‌ ‌ao‌ ‌fim‌ ‌em‌ ‌1948,‌ ‌com‌ ‌a‌ ‌fundação‌ ‌do‌ ‌Estado‌ ‌de‌ ‌Israel‌ ‌em‌ ‌sua‌ ‌região‌ ‌de‌ ‌origem,‌ ‌onde‌ ‌havia‌ ‌se‌ ‌mantido,‌ ‌ao‌ ‌longo‌ ‌do‌ ‌tempo,‌ ‌uma‌ ‌expressiva‌ ‌presença‌ ‌judaica.‌ ‌Ainda‌ ‌hoje,‌ ‌o‌ ‌povo‌ ‌judeu‌ ‌mantém‌ ‌a‌ ‌sua‌ ‌unidade‌ ‌através‌ ‌das‌ ‌histórias,‌ ‌tradições‌ ‌e‌ ‌cultos‌ ‌religiosos,‌ ‌independentemente‌ ‌do‌ ‌idioma‌ ‌ou‌ ‌da‌ ‌nacionalidade‌ ‌de‌ ‌cada‌ ‌indivíduo.‌ ‌

[4]MOUROS: também chamados de mauros ou mauritanos (pelos antigos romanos), o termo refere-se aos povos islâmicos de língua árabe oriundos do Norte da África que a partir do século VII invadiram a Península Ibérica, a Sicília, Malta e a França. Faziam parte dos grupos étnicos berberes e árabes, dominaram por vários séculos parte da Europa, divididos em grandes e pequenos califados, emirados e taifas. Até o ano de 1492 quando foi encerrado o processo de Reconquista com a rendição do último reino, de Granada (Espanha), expandiram sua cultura, arquitetura e religião principalmente entre os ibéricos, convertendo boa parte de seus habitantes ao islamismo. Com a retomada do Cristianismo como religião oficial, a maior parte das monumentais mesquitas construídas pelos mouros foi convertida em igrejas em um processo de sincretismo, e a arquitetura mista passou a ser denominada mourisca, bem como os mouros que se converteram ao Cristianismo e permaneceram na Europa depois da expulsão definitiva.

[5]MULATO: no Brasil colônia, o termo mulato começou a aparecer em escritos de fins do século XVI, referindo-se à ascendência, designando o filho de homem branco com mulher negra ou de negro com branca. De acordo com os estatutos de pureza de sangue portugueses, os mulatos eram considerados uma "raça infecta", sendo-lhes vetado o acesso a determinados cargos públicos e títulos de nobreza. A despeito disto, muitos conseguiram assumir postos de proeminência no Brasil colonial e conquistaram títulos nobiliárquicos. Com o tempo, o termo mulato passou a ser associado à cor, identificando aqueles cujo tom de pele estaria entre o negro e o branco. Enquanto o termo pardo, por sua vez, era privilegiado na documentação oficial, a categoria “mulato” assumia frequentemente uma conotação pejorativa, sendo associada a características negativas, como indolência, arrogância e desonestidade. As mulatas eram relacionadas à lascívia, ou seja, com considerada propensão a luxúria sendo, por isso, tidas como um risco à fidelidade conjugal da família branca. Não podiam, também, alcançar a estima social garantida às mulheres ditas honradas através do casamento legítimo, já que esse lhes era vetado. Elo entre as duas posições mais antagônicas da sociedade colonial, muitas vezes, resultante de relações extraconjugais entre senhores e escravas, o mulato era visto como uma ameaça à ordem senhorial escravista da qual era produto. Mesmo quando livres ou forros, os mulatos carregavam o estigma da escravidão. Não tinham direitos filiais, embora estivessem mais aptos que os negros de dispor de favores pelo seu parentesco com o senhor branco, daí a expressão utilizada no período colonial de que alguns senhores se deixavam “governar por mulatos”. A visão desabonadora a respeito dos mulatos, provavelmente deita raízes nessas “facilidades” provindas de sua origem paterna, por exemplo, na compra e concessão de alforrias colocando em questão o princípio do partus sequitur ventrem, que previa a hereditariedade do cativeiro, embora existissem exceções e, alguns conseguissem, inclusive, tomar parte nas heranças familiares.

[6]MESAS DAS ORDENS TERCEIRAS: as Mesas eram uma espécie de Conselho que compunha a estrutura político-administrativa das ordens terceiras. Cabia à Mesa avaliar os que manifestassem interesse em ingressar na associação, da mesma forma que decidiam sobre aqueles que, por não cumprimento das leis do estatuto da Ordem, deveriam retirar-se da mesma. Os integrantes da Mesa eram escolhidos por meio de votação, restrita à participação masculina. O cargo de ministro era o mais importante dentro desse corpo deliberativo. As eleições para essa função e a dos demais mesários baseava-se em uma lista elaborada pelo secretário da Mesa, o qual indicava três irmãos para o cargo com base nas qualidades necessárias. Essa lista era divulgada ao público um mês antes da eleição, sendo a votação secreta. O método de seleção e decisão das Mesas era bem mais fechado na Ordem de São Francisco do que na Ordem do Carmo. Embora a participação feminina nos cargos da Ordem estivesse prevista nos estatutos, as irmãs estavam excluídas de integrarem as Mesas. A elas cabiam arrecadar as contribuições em dinheiro e, posteriormente, poderiam ingressar nos cargos de zeladoras e vigárias de culto divino, com atribuições semelhantes à dos irmãos nesses cargos.

[7]VITÓRIA: localizada no estado do Espírito Santo, a Ilha de Vitória era chamada pelos índios de Guanaaní ou Ilha do Mel, em razão da sua geografia, além de fauna e flora abundantes. D. João III, à época rei de Portugal, ao dividir as terras do Brasil em capitanias hereditárias, destinou a capitania do Espírito Santo ao fidalgo Vasco Fernandes Coutinho. Este assume o cargo em 23 de maio de 1535, na atual cidade de Vila Velha que passa a ser a sede da capitania. A capitania foi chamada de Espírito Santo em homenagem à terceira representação da Santíssima Trindade, já que era oitava de Pentecostes. Em busca de um local mais seguro para protegerem-se dos ataques dos índios e dos estrangeiros, principalmente holandeses e franceses, os portugueses seguiram pela baía de Vitória e fundaram a Vila Nova do Espírito Santo, que passou a ser a capital. Mais tarde, em 1551, a povoação ganhou o nome de Vitória, em razão do sucesso obtido pelos portugueses na luta contra os índios. O núcleo urbano inicial tinha pequenas plantações ou roças de milho e mandioca, denominadas "capixabas" pelos povos indígenas. O termo acabou sendo usado pela população de Vitória para designar os habitantes originais da ilha e, depois, todos os indivíduos nascidos no Espírito Santo. Sendo uma vila portuária, Vitória enfrentou constantes ataques de estrangeiros em busca de açúcar e de pau-brasil. A ocupação do território se concentrou nas partes altas, e posteriormente, uma série de aterramentos na região portuária permitiu o desenvolvimento das primeiras ruas de comércio na cidade baixa. Vitória ganha status de cidade somente em 1823, por meio de um decreto-lei imperial. Na segunda metade do século XIX, o Espírito Santo recebe levas de imigrantes europeus, com destaque para alemães e italianos, que estabeleceram colônias em seu território.

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