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Sala de aula

Escrito por Mirian Lopes Cardia | Publicado: Terça, 05 de Junho de 2018, 14h40 | Última atualização em Segunda, 11 de Junho de 2018, 12h51

Edital que proíbe o despejo de águas sujas nas ruas

 

Registro de edital publicado por Paulo Fernandes Viana que proíbe se jogue água suja, lixo ou entulho nas ruas e travessas da cidade, o que se punirá com prisão e pagamento de fiança no valor de dois mil réis. Toma esta medida em virtude da importância do assunto para a "Saúde Pública" e para o "asseio" da cidade, e devido à falta de vigilância e de cuidados da Câmara com o assunto. Comunica que mandou afixar aquele edital em todos os lugares públicos da cidade para que todos soubessem.

Conjunto documental: Registro de avisos, portarias, ordens e ofícios à Polícia da Corte, editais, provimentos, etc
Notação: códice 318
Datas-limite: 1808-1809
Título do fundo ou coleção: Polícia da Corte
Código do fundo ou coleção: ØE
Argumento de pesquisa: cidades, ordem pública
Data do documento: 20 de abril de 1808
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 3

 

Registro do edital[1] que abaixo se segue

O doutor Paulo Fernandes Viana[2] cavaleiro da Ordem de Cristo[3], e intendente geral da Polícia da Corte[4] e etc. Faço saber a todos que o presente edital virem ou dele notícia tiverem que concorrendo muito o asseio digo concorrendo o asseio da cidade muito para a salubridade[5] dela e importando este objeto a Saúde Pública[6] e a Polícia, e não tendo sido bastantes até agora os cuidados que a Câmara[7] tem empregado para se evitarem os males que do contrário se seguem ou pela pouca vigilância e mesmo pela corrupção dos rendeiros ou dos oficiais executores das suas deliberações: da data deste em diante se vigiará por esta Intendência com zelo e atividade em que se não contravenha por qualquer princípio que seja este importante objeto: que toda a pessoa que for encontrada a deitar águas sujas lixo, e qualquer outra imundície nas ruas e travessas será presa, e não sairá da cadeia sem pagar dois mil réis para o cofre das despesas da Polícia: o que igualmente se praticará com os que constar que o fizeram, ainda que, não sejam achados, ou tiverem as suas testadas sujas, não mostrando logo quem foram, a não ser eles ou vizinhos, ou pessoas que assim o praticaram. E para que se não chamem a ignorância mandei afixar o presente por todos os lugares públicos desta cidade para que assim chegue à notícia de todos. Rio a 20 de abril de 1808. Paulo Fernandes Viana

 

[1] Documento oficial pelo qual se determinam posturas, denúncias, ou avisos, e que são afixados em lugares públicos para conhecimento geral. Segundo Antônio Moraes e Silva, no Diccionario da lingua portugueza... (2.ed. Lisboa: Typ. Lacérdina, 1813, vol. 1), “ordem, mandato do príncipe, ou magistrado, que se afixa nos lugares públicos para que chegue à notícia de todos”. Logo que criada a Intendência de Polícia da Corte em 1810, por exemplo, o intendente Paulo Fernandes Viana emitiu uma série de editais contendo posturas e determinações que regiam a ocupação urbana e a vida social nos lugares públicos da cidade do Rio de Janeiro, visando a manutenção da ordem.

[2] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

[3] Ordem fundada por d. Dinis em 1318, em substituição à Ordem dos Cavaleiros do Templo (Ordem militar dos Templários, extinta no ano de 1311 por ordem do papa Clemente V), sendo reconhecida por bula papal no ano seguinte. No hábito dos cavaleiros da ordem militar de Nosso Senhor Jesus Cristo há uma cruz vermelha, fendida no meio com outra branca. A Ordem de Cristo esteve presente nos descobrimentos e conquistas ultramarinas, financiando navegações e assegurando o domínio espiritual sobre as possessões. Simbolizando sua presença na aventura marítima, todas as armadas que se lançavam ao mar levavam os estandartes das armas reais assentes sobre a cruz da Ordem de Cristo. A Ordem Militar de Cristo era concedida por destacados serviços prestados ao reino e que mereciam especial distinção. Entre os seus cavaleiros incluem-se importantes navegadores do período da expansão marítima, como Gil Eanes, Vasco da Gama, Duarte Pacheco e Pedro Alvares Cabral.

[4] A Intendência de Polícia foi uma instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral da Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro, sendo responsável pela manutenção da ordem, o cumprimento das leis, pela punição das infrações, além de administrar as obras públicas e organizar um aparato policial eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas perniciosas e subversivas. Na prática, entretanto, a Polícia da Corte esteve também ligada a outras funções cotidianas da municipalidade, atuando na limpeza, pavimentação e conservação de ruas e caminhos; na dragagem de pântanos; na poda de árvores; aterros; na construção de chafarizes, entre outros. Teve uma atuação muito ampla, abrangendo desde a segurança pública até as questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais, relacionados a conflitos conjugais e familiares como mediadora de brigas de família e de vizinhos, entre outras atribuições. O aumento drástico da população na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, da população africana circulando nas ruas da cidade a partir de 1808, esteve no centro das preocupações das autoridades portuguesas, e nela reside uma das principais motivações para a estruturação da Intendência de Polícia que, ao contrário do que vinha ocorrendo no Velho Mundo, deu continuidade aos castigos corporais junto a uma parcela específica da população. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil na primeira metade do século XIX, e apresentava um caráter também político, uma vez que vigiava de perto as classes populares e seu comportamento, com ou sem conotação ostensiva de criminalidade. Um dos traços mais marcantes da manutenção desta ordem política, sobreposta ao combate ao crime,  se expressa em sua atuação junto à população negra – especialmente a cativa – responsabilizando-se inclusive pela aplicação de castigos físicos por solicitação dos senhores, mediante pagamento. O primeiro Intendente de Polícia da Corte foi Paulo Fernandes Vianna, que ocupou o cargo de 1808 até 1821, período em que organizou a instituição. Subordinava-se diretamente a d. João VI, e a ele prestava contas através dos ministros. Durante o período em que esteve no cargo, percebe-se que muitas funções exercidas pela Intendência ultrapassavam sua alçada, em especial àquelas relacionadas à ordem na cidade e às despesas públicas, por vezes ocasionando conflitos com o Senado da Câmara. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros.

[5] Por muito tempo considerado insalubre por médicos e sanitaristas, o Rio de Janeiro foi objeto de fortes intervenções no espaço urbano e na vida social. Algumas iniciativas de ordenamento urbano e de grandes obras, como a construção do aqueduto, são mais nitidamente observadas a partir de 1763, quando a cidade se tornou sede do poder colonial. Mas é a partir da chegada da Corte que se dá uma ruptura. Logo em 1808, d. João nomeou Manoel Vieira da Silva físico-Mor do reino e encomendou-lhe uma memória sobre a situação de salubridade na Corte e as possíveis soluções para a melhoria das condições de saúde. Segundo sua interpretação, a situação higiênica de uma cidade era determinada por suas condições geográficas e climáticas em relação com os seres vivos. No caso da Corte, esta era considerada bastante ruim, em virtude da alta umidade, do calor forte e constante e da pouca circulação do ar, o que favorecia a proliferação de doenças, a putrefação de organismos e o enfraquecimento da saúde de seus habitantes. Entretanto, a seu ver, os maiores empecilhos à melhoria das condições de saúde do Rio de Janeiro não eram o clima ou o relevo, mas os pântanos ou as "águas estagnadas" que, em interação com o calor e substâncias em decomposição, eram o “principal lugar entre as causas de insalubridade de qualquer local” (SILVA, Manoel Vieira da. "Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro", p. 510. In: BARBOSA, Placido et REZENDE, Cassio (orgs.). Os serviços de saúde pública no Brasil especialmente na cidade do Rio de Janeiro de 1808 a 1907: esboço histórico e legislação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, p. 507-517). Esses locais deveriam, segundo Vieira da Silva, ser aterrados pela Intendência de Polícia da Corte; os sepultamentos no interior de igrejas proibidos e os cemitérios nas áreas urbanas e populosas deslocados para os arredores. Outro aspecto importante era a ausência de controle da saúde nos portos. As pessoas que desembarcavam no Brasil – em grande número, então, depois da abertura dos portos às nações amigas – poderiam propagar epidemias, sobretudo os escravos que, transportados em péssimas condições de higiene nos navios negreiros, quando não chegavam mortos, frequentemente vinham gravemente doentes e debilitados. Para este problema, Vieira sugeria a construção de lazaretos para períodos de quarentena e a inspeção dos navios que aportassem no Brasil antes do desembarque. Por último, abordava problemas da conservação dos alimentos que, muitas vezes, eram vendidos já em decomposição, o que demandava maior fiscalização das condições sanitárias pela Inspetoria de Saúde, e a questão dos matadouros, que prejudicavam as condições de saúde e favoreciam a proliferação de moléstias.

[6] Logo que chegou à Américad. João criou duas autoridades sanitárias encarregadas dos serviços de saúde pública na administração do reino: o cirurgião-mor do Exército e o físico-mor do Reino que, juntos (e com os seus delegados, juízes, escrivães, meirinhos, entre outros oficiais) formavam a Inspetoria Geral de Saúde Pública. O cirurgião-mor era responsável por todas as atividades relativas ao ensino e exercício da cirurgia pelos sangradores, barbeiros, parteiras, dentistas, hospitais e médicos do exército. Ao físico-mor cabiam as atividades concernentes ao ensino e exercício da medicina, questões relativas a médicos e pacientes, ao exercício da farmácia, aos droguistas, boticários e curandeiros, às epidemias e ao saneamento das cidades. Esses profissionais eram encarregados de estabelecer uma política de saúde pública através, principalmente, da atuação da Intendência de Polícia no que tange às questões de saneamento e ordem pública; melhoria da salubridade do ar e da cidade; questões de vigilância sanitária dos estabelecimentos que comercializavam remédios e alimentos e no controle das práticas médicas. Agiam, também, no controle das epidemias, quer pela difusão das práticas de higiene, quer pela introdução da vacinação, principalmente para controlar doenças graves, como, por exemplo, a varíola (bexiga) e a febre amarela, que assolavam a população.

[7] Peças fundamentais da administração colonial, as câmaras municipais representam o poder local das vilas. Foram criadas em função da necessidade de a Coroa portuguesa controlar e organizar as cidades e vilas que se desenvolviam no Brasil. Por intermédio das câmaras municipais, as cidades se constituíam como cenário e veículo de interlocução com a metrópole nos espaços das relações políticas. Do ponto de vista da administração municipal e da gestão política, foram, durante muitos anos, a única instituição responsável pelo tratamento das questões locais. Desempenhavam desde funções executivas até policiais, em que se destacam resolução de problemas locais de ordem econômica, política e administrativa; gerenciamento dos gastos e rendas da administração pública; promoção de ações judiciais; construção de obras públicas necessárias ao desenvolvimento municipal a exemplo de pontes, ruas, estradas, prédios públicos, etc; criação de regras para o funcionamento do comércio local; conservação dos bens públicos e limpeza urbana. As câmaras municipais eram formadas por três ou quatro vereadores (homens bons), um procurador, dois fiscais (almotacéis), um tesoureiro e um escrivão, sendo presidida por um juiz de fora, ou ordinário empossado pela Coroa. Somente aos homens bons, pessoas influentes, em sua grande maioria proprietários de terras, integrantes da elite colonial, era creditado o direito de se elegerem e votarem para os cargos disponíveis nas câmaras municipais.

 

Horário de fechamento de vendas, botequins e casas de jogos

Registro do edital expedido por Paulo Fernandes Viana, intendente geral de Polícia da Corte, em que proíbe que vendas, botequins e casas de jogos fiquem abertos depois das dez horas da noite para evitar "ajuntamentos de ociosos" e de escravos que faltam ao serviço. Estava prevista a pena de pagamento de mil e duzentos réis para quem estivesse presente em uma destas casas, incluindo seus donos e caixeiros depois do horário estabelecido, que seria dividido entre os oficiais de justiça que achassem as casas abertas e o cofre da Intendência de Polícia. Avisava ainda que o edital seria afixado em lugares públicos para que todos tomassem conhecimento das novas medidas.

Conjunto documental: Registro de avisos, portarias, ordens e ofícios à Polícia da Corte, editais, provimentos, etc
Notação: códice 318
Datas-limite: 1808-1809
Título do fundo ou coleção: Polícia da Corte
Código do fundo ou coleção: ØE
Argumento de pesquisa: cidades, ordem pública
Data do documento: 7 de maio de 1808
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 11v

Leia esse documento na íntegra

 

Registro do edital[1] que abaixo se segue

O doutor Paulo Fernandes Viana[2] cavaleiro professo na Ordem de Cristo[3], desembargador da Relação e Casa do Porto[4], e Intendente Geral da Polícia[5] e etc. Faço saber que importando a Polícia da cidade que as vendas, botequins, e casas de jogos[6], não estejam toda a noite abertas para se evitarem ajuntamentos de ociosos, mesmo de escravos[7] que faltando ao serviço de seus senhores se corrompem uns e outros, dão ocasião a delitos[8] que se devem sempre prevenir, e se fazem maus cidadãos fica da data deste proibida pela Intendência Geral da Polícia a culposa licença com que até agora estas casas se têm conservado abertas, e manda-se que logo as dez horas se fechem e seus donos, e caixeiros expulsem os que nela estiverem debaixo da pena de pagarem da cadeia os donos, caixeiros, e quaisquer pessoas que nelas forem achadas da indicada hora em diante mil e duzentos réis cada um dos quais se dará sempre a metade a ronda, ou oficial de justiça[9], e da Polícia que os levar a cadeia e a outra metade será para o cofre das despesas desta Intendência. E para que chegue a notícia de todos se afixará o presente nos lugares públicos. Rio a 7 de maio de 1808. Paulo Fernandes Viana = Edital para das dez horas em diante se fecharem todas as vendas, botequins, e casas de jogos, debaixo da pena nele declarada.

 

[1] Documento oficial pelo qual se determinam posturas, denúncias, ou avisos, e que são afixados em lugares públicos para conhecimento geral. Segundo Antônio Moraes e Silva, no Diccionario da lingua portugueza... (2.ed. Lisboa: Typ. Lacérdina, 1813, vol. 1), “ordem, mandato do príncipe, ou magistrado, que se afixa nos lugares públicos para que chegue à notícia de todos”. Logo que criada a Intendência de Polícia da Corte em 1810, por exemplo, o intendente Paulo Fernandes Viana emitiu uma série de editais contendo posturas e determinações que regiam a ocupação urbana e a vida social nos lugares públicos da cidade do Rio de Janeiro, visando a manutenção da ordem.

[2] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

[3] Ordem fundada por d. Dinis em 1318, em substituição à Ordem dos Cavaleiros do Templo (Ordem militar dos Templários, extinta no ano de 1311 por ordem do papa Clemente V), sendo reconhecida por bula papal no ano seguinte. No hábito dos cavaleiros da ordem militar de Nosso Senhor Jesus Cristo há uma cruz vermelha, fendida no meio com outra branca. A Ordem de Cristo esteve presente nos descobrimentos e conquistas ultramarinas, financiando navegações e assegurando o domínio espiritual sobre as possessões. Simbolizando sua presença na aventura marítima, todas as armadas que se lançavam ao mar levavam os estandartes das armas reais assentes sobre a cruz da Ordem de Cristo. A Ordem Militar de Cristo era concedida por destacados serviços prestados ao reino e que mereciam especial distinção. Entre os seus cavaleiros incluem-se importantes navegadores do período da expansão marítima, como Gil Eanes, Vasco da Gama, Duarte Pacheco e Pedro Alvares Cabral.

[4] A denominação Relação da Casa do Porto refere-se à transferência da Casa do Cível, de Lisboa, para a cidade do Porto. A modificação foi oficializada por Filipe II, em 27 de julho de 1582, em razão das dificuldades de deslocamento encontradas pelos povos das províncias do Norte, ao terem que se dirigir a Lisboa para tratar dos seus casos. Deste modo, à nova Relação passaram a pertencer as comarcas e ouvidorias de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beira, com exceção de Castelo Branco, Esgueira e Coimbra. Posteriormente, essa situação seria mantida pelas Ordenações Filipinas de 1603. Constituía um dos principais tribunais superiores e funcionava como uma das últimas instâncias de apelação, assim como a Casa de Suplicação, pois se subordinava diretamente ao rei.

[5] A Intendência de Polícia foi uma instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral da Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro, sendo responsável pela manutenção da ordem, o cumprimento das leis, pela punição das infrações, além de administrar as obras públicas e organizar um aparato policial eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas perniciosas e subversivas. Na prática, entretanto, a Polícia da Corte esteve também ligada a outras funções cotidianas da municipalidade, atuando na limpeza, pavimentação e conservação de ruas e caminhos; na dragagem de pântanos; na poda de árvores; aterros; na construção de chafarizes, entre outros. Teve uma atuação muito ampla, abrangendo desde a segurança pública até as questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais, relacionados a conflitos conjugais e familiares como mediadora de brigas de família e de vizinhos, entre outras atribuições. O aumento drástico da população na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, da população africana circulando nas ruas da cidade a partir de 1808, esteve no centro das preocupações das autoridades portuguesas, e nela reside uma das principais motivações para a estruturação da Intendência de Polícia que, ao contrário do que vinha ocorrendo no Velho Mundo, deu continuidade aos castigos corporais junto a uma parcela específica da população. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil na primeira metade do século XIX, e apresentava um caráter também político, uma vez que vigiava de perto as classes populares e seu comportamento, com ou sem conotação ostensiva de criminalidade. Um dos traços mais marcantes da manutenção desta ordem política, sobreposta ao combate ao crime,  se expressa em sua atuação junto à população negra – especialmente a cativa – responsabilizando-se inclusive pela aplicação de castigos físicos por solicitação dos senhores, mediante pagamento. O primeiro Intendente de Polícia da Corte foi Paulo Fernandes Vianna, que ocupou o cargo de 1808 até 1821, período em que organizou a instituição. Subordinava-se diretamente a d. João VI, e a ele prestava contas através dos ministros. Durante o período em que esteve no cargo, percebe-se que muitas funções exercidas pela Intendência ultrapassavam sua alçada, em especial àquelas relacionadas à ordem na cidade e às despesas públicas, por vezes ocasionando conflitos com o Senado da Câmara. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros.

[6] As vendas, botequins e casas de jogos usualmente referem-se ao mesmo espaço, ou seja, às tavernas ou botequins da época colonial e às suas diferentes funções. Esses botequins eram também vendas, isto é, pequenos armazéns que forneciam secos e molhados, bebidas alcoólicas e comida, sobretudo para os trabalhadores livres e pobres; escravos urbanos de ganho e libertos. Os jogos de azar (bilhar, carteado, dados, jogos de casquinha e capoeira), eram igualmente praticados nos botequins, mas também existiam as casas de jogos especializadas, onde havia, do mesmo modo, álcool e prostituição. Esses estabelecimentos – conhecidos como public houses – eram proibidos, assim como os jogos em que se apostava dinheiro. No entanto, tais locais nunca eram convenientemente reprimidos pela força policial, que sabia de sua existência, mas nem sempre os repelia, devido, possivelmente, à corrupção dos oficiais que executavam as prisões e fechamentos. Os botequins, em toda sua variedade de atividades, eram locais de sociabilização e lazer das classes baixas, onde trabalhadores pobres e escravos se reuniam para a “cachaça”, a diversão (os jogos) e a conversa. Desses encontros, podiam resultar conspirações, movimentos revoltosos e planos de fuga, no caso dos escravos, mas que, habitualmente, terminavam em discussões e brigas, associadas à bebedeira e ao jogo. Os donos dessas casas demonstravam por vezes preocupação para que as “atividades” não fugissem ao controle e lhes provocassem prejuízos e danos, como os causados por brigas e arruaças e, nesses casos, acabavam cooperando com a polícia. Ainda assim, frequentemente, protegiam e davam abrigo aos que precisavam, por exemplo, se esconder da polícia, desrespeitando algumas vezes a lei e ainda o horário de fechamento das tavernas. Desde a época da criação da Intendência de Polícia da Corte no Rio de Janeiro em 1808, há uma clara intenção de disciplinar o tempo livre da população pobre: ao diminuir o horário de funcionamento das casas, diminuíam-se as preocupantes aglomerações, bem como o risco da desordem e da perda do controle, principalmente, da grande população escrava do Rio de Janeiro.

[7] Pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de JaneiroBahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[8] A maior parte dos delitos cometidos por escravos, sobretudo durante o período joanino, podia, de acordo com Leila Algranti (O feitor ausente. Estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis: Vozes, 1988.), se dividir em quatro grandes categorias, a saber: crimes contra a propriedade, crimes de violência, crimes contra a ordem pública e fugas, motivados, em geral, por duas razões principais, sendo a mais imediata suprir as próprias necessidades básicas e materiais (alimentação e roupas) ou, de forma geral, contestar o regime escravista e se vingar dos maus tratos recebidos dos senhores. A maior parte dos crimes no período joanino era cometida por escravos de ganho, que tinham dificuldades para pagar as diárias a seus proprietários e se manter. Mas outros cativos, forros e também os brancos pobres eram responsáveis pela criminalidade que tanto assustava a “boa sociedade” do Rio de Janeiro. Entre os crimes executados por escravos, os considerados mais graves eram as fugas e os crimes contra a ordem pública, como capoeiragem, porte de armas, vadiagem, insultos a autoridades, jogos de azar (entre eles o jogo de casquinha), desrespeito ao toque de recolher, brigas, bebedeiras, agressões físicas e pequenas desordens, os dois primeiros sendo considerados os mais graves. A capoeira aterrorizava a população livre porque não era somente uma dança, mas uma luta, uma forma de defesa e ataque. Os escravos não precisavam estar praticando-a para serem presos, bastava que usassem algum adorno típico (fitas coloridas), assobiassem músicas, carregassem algum instrumento para serem levados pela polícia. O porte de armas também era considerado um crime gravíssimo, cuja punição seria equivalente ao uso que se poderia fazer delas. As armas mais comuns eram facas, canivetes e navalhas, mas poderia também ser qualquer objeto: paus, pedras, ferro, vidro, garrafas, entre outros. Esses crimes e sua repressão evidenciavam a preocupação da polícia em disciplinar e controlar o comportamento e a circulação dos escravos, sobretudo depois do trabalho. O estabelecimento do toque de recolher revela esse controle: os escravos eram proibidos de circular nas ruas depois do anoitecer. Essa preocupação e a vigilância aumentaram à medida que crescia a população cativa do Rio de Janeiro, ao longo do período joanino. Os crimes contra a propriedade incluíam pequenos furtos, normalmente de roupas, alimentos, aves e pequenos objetos, sendo mais difíceis os roubos de produtos mais valiosos. Os crimes de violência eram brigas, agressões físicas, facadas – habitualmente ocorridas por causa de bebedeiras ou desavenças por jogo em botequins. Quanto às penas mais comuns imputadas aos escravos, temos: os castigos corporais (ferros e açoites), de caráter exemplar; os trabalhos forçados, quase sempre em obras públicas da Intendência de Polícia; e a prisão, associada à outra forma de castigo, além das punições impostos pelos senhores. A intensidade da pena também aumentou com o crescimento da população de escravos. Por exemplo, um cativo apanhado por porte de armas, em 1808, pegaria pena de 50 açoites; em 1820, a pena seria de 300 açoites, três meses de prisão, quando não também alguns meses de trabalho em calçamento de estradas. Os escravos eram tratados sempre como suspeitos de toda sorte de desordem.

[9] Também chamado oficial de diligências, era um funcionário incumbido de cumprir as ordens e mandatos estabelecidos por juízes e magistrados. Na Intendência de Polícia da Corte, desempenhavam o papel de fiscalizar as obras, verificar irregularidades, aplicar e cobrar multas e executar as ordens dadas pelo intendente e pelos juízes da Câmara Municipal.

 

Instruções para inspeção das casas da Corte

Ofício expedido pelo intendente geral de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana, ao juiz do crime do bairro de Santa Rita, João Martins Pena, sobre outro ofício de 10 de fevereiro de 1816. Esse nomeava o juiz para principiar a inspeção das casas velhas e novas determinadas pela intendência e sugerir medidas para resolver os problemas que pudessem ser encontrados. Anexa as instruções sob as quais se deve fazer a inspeção, com "método e acerto".

Conjunto documental: Registros de ordens e ofícios expedidos da Polícia aos ministros criminais dos bairros e comarcas da Corte e ministros eclesiásticos
Notação: códice 329, vol. 03
Datas-limite: 1815-1817
Título do fundo ou coleção: Polícia da Corte
Código do fundo ou coleção: ØE
Argumento de pesquisa: cidades, ordem pública
Data do documento: 16 de fevereiro de 1816
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

Registro das instruções dadas ao magistrado do bairro de Santa Rita[1], para a inspeção das casas[2] arruinadas e mal edificadas desta Corte.

Instruções dadas ao magistrado para a inspeção dos prédios desta Corte na conformidade do edital da Polícia de 12 do corrente = Por carta avisará aos arquitetos da Casa Real[3] José da Costa, e João da Silva Muniz para que com os mestres carpinteiros e pedreiros, que eles nomearem se ache em sua casa no dia tal para se principiar a inspeção, que deverá ser impreterivelmente no dia 19 ou 20, e se fará em três dias de cada semana, que vossa mercê como ministro sempre assinalará, e assim se irá continuando até se concluir a inspeção geral dos prédios já edificados, e das obras novas que qualquer fizer, porque é da competência desta Inspeção pedir o risco destas e ver se os alicerces e paredes são feitos com a segurança, e direitura conveniente, e com os massames competentes, e ordenar as emendas que se deverem praticar. = O mesmo ministro chamará para escrivão fixo desta inspeção o do Juízo do Crime[4] da Candelária[5] ordenando-lhe que compareça com livro que será pago por esta Intendência[6] onde lance o dia mês e ano em que se fizer inspeção, e o resultado dela pelo formulário que aqui se descreve na forma seguinte = 1816 = Rua da Quitanda = Fevereiro _ 20 _ A inspeção achou o prédio n° __ de que é inquilino F.__ e Proprietário F. = neste ou naquele estado e determinou com os mestres abaixo assinados que tal parede se devia arriar, e levantar assim e por este ou aquele modo, escorando-se da parte da rua por tal maneira, e da parte de tal por este ou aquele modo. = E quando nada achar dirá = Em todo este dia tudo se achou corrente e assinarão = Porque por este livro é que se deve pelo mesmo ministro ordenar a obra, mandar pagar os mestres a custa das partes cujos prédios se acharem arruinada, o que pelo regimento lhes toca por diário ou quando não houver parte, pelo cofre da Intendência, expedindo-lhe atestado para eles virem procurar na Intendência o seu pagamento. = A inspeção do dia seguinte deve começar onde aquela se acabou no antecedente mas fica livre ao ministro ir primeiro aos prédios denunciados por se reputar e presumir nestes mais certo o mal que se deve remediar. =  O que se assentar na inspeção deve executar-se prontamente sem admitir embargos, agravos, nem apelações, e quem lhe requerer contra a decisão, deve ordenar-lhe que requeira a Intendência indo sempre dando a execução o que por ela se determinou. = Se o dono do prédio inspecionado não principiar o derrubamento que se lhe determinar no termo que se lhe assinar pela inspeção, o mesmo ministro mandará fazer a obra, e tomar os aviamentos por conta dele, penhorando-lhe bens para este pagamento aluguéis de quaisquer outras propriedades, e até o valor dos chãos daquela mesma de cuja reedificação se trata, para pôr tudo em segurança do pagamento do mestre que tomar conta da obra que irá formalizando férias de jornais, e de materiais para lhe serem pagas o mais prontamente que for possível pelo mesmo ministro que deve segurar a prontidão do pagamento. = Ocorrendo algum inconveniente que aqui não esteja providenciando dará parte para da Intendência lhe ir resolvido. = Rio de Janeiro 16 de fevereiro de 1816 = Paulo Fernandes Viana[7]

 

[1] A freguesia de Santa Rita surgiu no Rio de Janeiro, no entorno da igreja de mesmo nome, erigida em 1721 por Manuel Nascentes Pinto e sua mulher, Antônia Maria, que trouxeram uma imagem da santa de Portugal e iniciaram um culto doméstico aberto, que atraía muitos devotos. Decidiram-se por erigir a igreja para Santa Rita em uma chácara ao pé do morro da Conceição, que depois passou a dar nome ao largo, atualmente localizado no final da avenida Marechal Floriano (antiga rua de São Joaquim), esquina com a rua Visconde de Inhaúma. A igreja foi elevada à condição de freguesia em 1753. Próximo a ela ficava o cemitério dos pretos novos.

[2] As edificações no Brasil sofreram várias alterações ao longo do período colonial. No início da colonização, ainda no século XVI, as construções tinham uma estrutura de "casa-grande", uniam-se os lugares de moradia e trabalho no mesmo espaço, constituindo quase pequenas fortalezas, bem guarnecidas e protegidas, onde os colonos se aquartelavam evitando ataques indígenas ainda comuns nos primeiros anos da ocupação portuguesa. Ao correr dos séculos XVII e XVIII, as casas perdem este caráter de fortificação, mantendo, entretanto a função de moradia e local de trabalho - o que dava um caráter público à vida nesta época. Tornam-se mais esparramadas ("derramadas", no dizer de Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala), ou seja, térreas e mais extensas, muito embora ainda continuassem bastante próximas umas das outras, a ponto de uma das primeiras medidas da recém-criada Intendência de Polícia da Corte ter sido a proibição de construir casas térreas no centro da cidade, sendo somente permitidos os sobrados, para evitar uma ocupação desordenada do espaço urbano. Os materiais utilizados para construção também se mantiveram por um bom tempo os mesmos: taipa (barro aplicado a um trançado de madeira ou bambu) para as paredes, chão batido nas casas térreas e assoalho de madeira nos sobrados, e palha e sapê, ou telhas de barro (sem forro) para os tetos. As casas não tinham água encanada ou esgotamento. Na maior parte do período colonial, a arquitetura e decoração (interna e externa) das habitações eram simples - com a vinda da família real e da Corte para o Rio de Janeiro o aspecto das casas começa a melhorar, sendo associado ao prestígio do dono. Surge também uma maior preocupação com a qualidade das edificações e da salubridade dos ambientes, o que promoveu uma tentativa de padronizar as construções visando diminuir o risco de acidentes e epidemias e controlar melhor a ocupação e uso do espaço público.

[3] Expressão utilizada para se referir tanto ao local físico onde viviam o rei e sua família, quanto à própria instituição monárquica em si. Compreende além da família real, as famílias fidalgas e a nobreza de Portugal. Instituição absolutista, foi responsável pela jurisdição e manutenção da hierarquia da numerosa criadagem subordinada diretamente ao rei, nos moldes da sociedade de corte do Antigo Regime. Sua organização encontrava-se dividida em áreas como o serviço nas câmaras e casas, cozinha, atividades relacionadas à caça, guarda, serviço religioso, entre outros. Os ofícios ligados à real câmara – neste caso, câmara é alusivo ao espaço de intimidade do monarca, a casa em que se dorme – compreendiam funções que envolviam um contato mais direto com o rei. O titular do ofício atuava no núcleo da corte, conferindo grande influência política àquele que a Coroa concedia autoridade para executar um determinado tipo de tarefa. Via de regra, as atividades estavam divididas entre ofícios maiores – que tinham vastas competências, era o caso do mordomo-mor e camareiro-mor – e os menores – que englobava trabalhos ligados a profissões “mecânicas”, como pintor, barbeiro, boticário, cirurgião e físico. Os cargos do serviço real eram muito disputados pelos fidalgos – ser criado da Casa Real não significava ser inferior, muito pelo contrário, além de ser um canal direto com o Rei, proporcionava honra, status e a possibilidade de obtenção de uma mercê. A Casa Real era organizada em seis setores administrativos, as “repartições”: a Mantearia Real, que tratava de assuntos relativos à mesa do Rei, sua família e dos fidalgos de sua casa, como toalhas, talheres, guardanapos, etc; a Cavalariça Real, que responde pelos equinos, muares, pelas seges e carruagens reais; Ucharia e Cozinhas Reais, que cuidavam da despensa – alimentação e bebidas – de toda a família real e de todas as famílias nobres e fidalgas do reino; a Real Coutada, responsável pelos terrenos reais, florestas e bosques; Guarda-Roupa Real, ocupado das vestimentas do rei e parentes; e a Mordomia mor, cuja principal atribuição era a organização e fiscalização dos outros setores. Houve grande dificuldade na reorganização da Casa Real no Brasil, principalmente pelos recursos escassos do Real Erário – e enormes gastos –, pelas intrigas e conflitos entre portugueses do reino e os colonos, pela precária utensilagem e falta de pessoal preparado para o serviço real, e pela própria dificuldade de adaptar costumes absolutistas antigos ao Brasil colonial. Ficaram conhecidas da população do Rio de Janeiro as frequentes contendas entre Joaquim José de Azevedo, tesoureiro da Casa Real, e d. Fernando José de Portugal e Castro, mordomo mor da Casa Real, presidente do Real Erário e secretário de Estado de d. João VI, em torno de recursos para manter o luxo da família real, que era considerada uma das mais simples da Europa. O excesso de gastos gerava problemas de fornecimento e abastecimento em toda a cidade, e frequentemente resultava em carestia de gêneros, principalmente para os mais pobres, que sentiam mais o peso de gerar divisas para sustentar a onerosa Casa Real de Portugal.

[4] Atribuição dada ao magistrado com competências semelhantes às do juiz de fora, mas restritas à esfera criminal. A ele, como aos juízes de fora, cabia realizar devassas sobre crimes acontecidos nos bairros (ou cidades) de sua jurisdição, visando a solucioná-los e a prender os culpados; executar as sentenças estabelecidas pelo intendente geral de Polícia da Corte e, especificamente no Brasil, cobrar as décimas – impostos pagos pelos proprietários de prédios urbanos. Os juízes do crime que atuavam no Brasil seguiam o regimento dos ministros criminais de Lisboa, cujas atribuições eram as mesmas. Com a chegada da corte, d. João criou mais postos de juiz do crime (alvará de 27 de junho de 1808), principalmente para o Rio de Janeiro, prevendo um incremento da criminalidade em decorrência do brusco e significativo aumento populacional que a cidade sofrera com o desembarque da família real e da corte, pretendendo incrementar a “segurança e a tranquilidade de seus vassalos”. Cada juiz do crime respondia por um bairro ou freguesia, como a da Candelária, da Sé, de São José e de Santa Rita, por exemplo.

[5] Freguesia situada próxima à antiga Sé, no centro da cidade do Rio de Janeiro, onde foi erguida uma das mais amplas e luxuosas igrejas do Rio de Janeiro, cuja origem remonta ao século XVII. Antônio Martins Palma e sua mulher Leonor Gonçalves, espanhóis, prometeram erigir uma igreja a Nossa Senhora da Candelária no primeiro porto que parasse, caso escapassem com vida de um naufrágio. Como desembarcaram no Rio de Janeiro, cumpriram a promessa e construíram uma pequena ermida, pronta em 1609. Em 1634, foi decretada a segunda sede paroquial da cidade, mas somente sofreu uma reforma significativa em 1710, embora ainda em meados do XVIII necessitasse de reformas para ampliação. Novas obras deram início em 1774, sob os planos do engenheiro militar Francisco João Roscio, que utilizou pedra extraída da pedreira da Candelária, no morro da Nova Sintra, no bairro do Catete. A igreja, ainda inacabada, foi inaugurada em 1811, em ato solene, contando com a presença de d. João VI. A igreja permaneceu em obras ao longo de todo o século XIX. Sua cúpula, com 62,24 metros de altura, foi concluída em 1877. A decoração do interior teve início no ano seguinte e seguiu um modelo neorrenascentista italiano fazendo uso de uma variedade de cores do revestimento de mármore: cinzentos, brancos, amarelos, verdes, vermelhos e negros. No teto da nave, há seis painéis que contam a história inicial da igreja da Candelária, desde a viagem dos fundadores até a primeira sagração. As portas da igreja são em estilo Luís XV, em bronze, esculpidas por Teixeira Lopes, fundidas em Bruzy, na França, e foram expostas na Exposição Universal de Paris, de 1889. A igreja compreende elementos de vários estilos, como o barroco e o art-nouveau.

[6] A Intendência de Polícia foi uma instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral da Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro, sendo responsável pela manutenção da ordem, o cumprimento das leis, pela punição das infrações, além de administrar as obras públicas e organizar um aparato policial eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas perniciosas e subversivas. Na prática, entretanto, a Polícia da Corte esteve também ligada a outras funções cotidianas da municipalidade, atuando na limpeza, pavimentação e conservação de ruas e caminhos; na dragagem de pântanos; na poda de árvores; aterros; na construção de chafarizes, entre outros. Teve uma atuação muito ampla, abrangendo desde a segurança pública até as questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais, relacionados a conflitos conjugais e familiares como mediadora de brigas de família e de vizinhos, entre outras atribuições. O aumento drástico da população na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, da população africana circulando nas ruas da cidade a partir de 1808, esteve no centro das preocupações das autoridades portuguesas, e nela reside uma das principais motivações para a estruturação da Intendência de Polícia que, ao contrário do que vinha ocorrendo no Velho Mundo, deu continuidade aos castigos corporais junto a uma parcela específica da população. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil na primeira metade do século XIX, e apresentava um caráter também político, uma vez que vigiava de perto as classes populares e seu comportamento, com ou sem conotação ostensiva de criminalidade. Um dos traços mais marcantes da manutenção desta ordem política, sobreposta ao combate ao crime,  se expressa em sua atuação junto à população negra – especialmente a cativa – responsabilizando-se inclusive pela aplicação de castigos físicos por solicitação dos senhores, mediante pagamento. O primeiro Intendente de Polícia da Corte foi Paulo Fernandes Vianna, que ocupou o cargo de 1808 até 1821, período em que organizou a instituição. Subordinava-se diretamente a d. João VI, e a ele prestava contas através dos ministros. Durante o período em que esteve no cargo, percebe-se que muitas funções exercidas pela Intendência ultrapassavam sua alçada, em especial àquelas relacionadas à ordem na cidade e às despesas públicas, por vezes ocasionando conflitos com o Senado da Câmara. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros.

[7] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

 

Limpeza do pântano do Valongo

Ofício emitido ao juiz do crime do bairro da Sé pelo intendente geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, no qual pede a limpeza de um pântano localizado nos fundos das casas da rua nova de São Joaquim. Este pântano, além de "nocivo à saúde pública", se tornou um cemitério de negros novos, dada a "ambição dos homens do Valongo" que querem evitar a despesa de enterrá-los. O "charco" sujava o bairro e a cidade, e, portanto, deveria ser aterrado, com entulho e terra dos terrenos vizinhos. Notifica ainda os "negociantes que recolherem pretos no Valongo para que nunca mais se atrevam a lançar por ali cadáveres" e ordena que se recolham os corpos para, através das marcas neles, se reconheçam de quais armazéns vieram e se imponham as penas aos culpados para acabar de vez com aquele "mal".

Conjunto documental: Registros de ordens e ofícios expedidos da Polícia aos ministros criminais dos bairros e comarcas da Corte e ministros eclesiásticos
Notação: códice 329, vol. 03
Datas-limite: 1815-1817
Título do fundo ou coleção: Polícia da Corte
Código do fundo ou coleção: ØE
Argumento de pesquisa: cidades, ordem pública
Data do documento: 9 de dezembro de 1815
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

Ofício expedido ao Juiz do Crime[1] do Bairro da Sé[2]

Nos fundos da rua nova de São Joaquim[3] e fundos das casas novamente edificadas nos cajueiros há um pântano que além de nocivo a saúde pública[4] ainda de mais a mais é cemitério de cadáveres de negros novos[5], pela ambição dos homens de Valongo[6] que para ali os lançam a fim de se forrarem a despesa de pagar cemitério. Desses males vem da existência do dito lago, um a perda do terreno, outro a facilidade de ali se conservarem cadáveres, e imundícies com que se imputa o bairro, e dele toda a cidade. Fica Vossa Mercê encarregado de fazer aterrar mandando no distrito de todo o seu bairro declarar ou por editais ou por notificações as obras que se fizerem de concertos que caliço e entulhos para ali se levem e de dias em dias os mande estender a enxada e assim mesmo vendo que terrenos vizinhos se podem tirar a terras para as pôr ali por meio de algumas carroças por ajustes cômodos de que me dará parte e logo ao mesmo tempo mande notificar a todos os negociantes que recolherem pretos no Valongo[7] para que nunca mais se atrevam a lançar para ali cadáveres ilegível de logo que se conheça que lhes os pertencem por marcas[8] e outras informações pagarem da cadeia trinta mil réis para se gastar no enxugamento, e melhoramento do mesmo charco. Ordene ao seu escrivão que nos autos que fizer dos corpos ali achados se examinem todas as marcas que tiverem ilegível individualmente e por elas, nessas ocasiões, mandará proceder a exame nos livros das cargas dos escravos[9] para descobrir de quem sejam e a que armazéns vieram, de forma que por este meio se possa impor as penas, e que todos conheçam que devem a Polícia[10] este miúdo exame a fim de extinguir este mal de que Vossa Mercê irá dando contas, pois que esta providência é perene, e tem um trato sucessivo para não se dar por acabada sem que todo se enxugue o pântano, e desapareçam os fatos de contravenção: para o que lhe fica esta notada. Deus Guarde a Vossa Mercê. Rio 9 de dezembro de 1815. = Paulo Fernandes Viana[11] = Senhor Juiz do Crime do Bairro da Sé

 

[1] Atribuição dada ao magistrado com competências semelhantes às do juiz de fora, mas restritas à esfera criminal. A ele, como aos juízes de fora, cabia realizar devassas sobre crimes acontecidos nos bairros (ou cidades) de sua jurisdição, visando a solucioná-los e a prender os culpados; executar as sentenças estabelecidas pelo intendente geral de Polícia da Corte e, especificamente no Brasil, cobrar as décimas – impostos pagos pelos proprietários de prédios urbanos. Os juízes do crime que atuavam no Brasil seguiam o regimento dos ministros criminais de Lisboa, cujas atribuições eram as mesmas. Com a chegada da corte, d. João criou mais postos de juiz do crime (alvará de 27 de junho de 1808), principalmente para o Rio de Janeiro, prevendo um incremento da criminalidade em decorrência do brusco e significativo aumento populacional que a cidade sofrera com o desembarque da família real e da corte, pretendendo incrementar a “segurança e a tranquilidade de seus vassalos”. Cada juiz do crime respondia por um bairro ou freguesia, como a da Candelária, da Sé, de São José e de Santa Rita, por exemplo.

[2] Freguesia que compreendia a região ao redor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo no Rio de Janeiro e limitava-se com o bairro de São José. Construída em 1570 em cumprimento a uma promessa, a Capela de Nossa Senhora da Expectação e do Parto foi doada pela Câmara, em 1589, aos carmelitas, que iniciaram a construção da atual igreja em 1761 – a sagração deu-se em 1770. Em 1808, com a chegada da família real, a Igreja foi convertida em Capela Real (mesmo que ainda incompletas as obras da fachada). No convento anexo foi instalada a rainha d. Maria I e suas damas, e outros órgãos, como a Ucharia Real e a Real Biblioteca. A Capela Real foi palco da sagração de d. João VI em 1818 e do casamento de d. Pedro com d. Leopoldina em 1817, dentre outros importantes eventos. Somente durante o primeiro reinado, já então denominada Capela Imperial, foram finalizadas as obras. Foi sede episcopal durante todo o Império e parte do período republicano. Em 1977 uma nova Catedral Metropolitana foi concluída. A partir de então passou a ser conhecida como a Antiga Sé (ou Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé).

[3] Hoje conhecida como avenida Marechal Floriano, uma das mais importantes e movimentadas do centro do Rio de Janeiro, nos tempos da Corte joanina era dividida em duas: a rua estreita de São Joaquim (mais antiga) e a rua larga de São Joaquim (a mais nova). A rua estreita compreendia o trecho entre a antiga rua da Vala, hoje Uruguaiana, e a rua do Valongo, atual Camerino, e era conhecida na época por seus prostíbulos e malandros. Anteriormente chamada de rua do Curtume, ganhou o novo nome em função da construção da igreja de São Joaquim, que também motivou a abertura da nova rua, três vezes mais larga que a primeira, que ia da igreja em direção ao campo de Santana. A igreja, que deu nome a ambas ruas, abrigou o Seminário de São Joaquim, que no século XIX se tornou o Imperial Colégio de Pedro II, e foi demolida para o alargamento da rua estreita e para a junção das duas ruas antigas em uma só – que mantém o mesmo traçado até hoje.

[4] Logo que chegou à Américad. João criou duas autoridades sanitárias encarregadas dos serviços de saúde pública na administração do reino: o cirurgião-mor do Exército e o físico-mor do Reino que, juntos (e com os seus delegados, juízes, escrivães, meirinhos, entre outros oficiais) formavam a Inspetoria Geral de Saúde Pública. O cirurgião-mor era responsável por todas as atividades relativas ao ensino e exercício da cirurgia pelos sangradores, barbeiros, parteiras, dentistas, hospitais e médicos do exército. Ao físico-mor cabiam as atividades concernentes ao ensino e exercício da medicina, questões relativas a médicos e pacientes, ao exercício da farmácia, aos droguistas, boticários e curandeiros, às epidemias e ao saneamento das cidades. Esses profissionais eram encarregados de estabelecer uma política de saúde pública através, principalmente, da atuação da Intendência de Polícia no que tange às questões de saneamento e ordem pública; melhoria da salubridade do ar e da cidade; questões de vigilância sanitária dos estabelecimentos que comercializavam remédios e alimentos e no controle das práticas médicas. Agiam, também, no controle das epidemias, quer pela difusão das práticas de higiene, quer pela introdução da vacinação, principalmente para controlar doenças graves, como, por exemplo, a varíola (bexiga) e a febre amarela, que assolavam a população.

[5] Até fins do século XVIII, o comércio de escravos efetuava-se nas ruas estreitas da área central do Rio de Janeiro, sobretudo nas áreas próximas ao Largo do Paço (hoje, Praça XV), concentrado no mercado da rua Direita. Os pretos novos – como eram chamados os escravos africanos recém-chegados – que sucumbiam no decorrer da longa e terrível viagem de travessia do Atlântico eram enterrados em um cemitério próximo ao Largo da Igreja de Santa Rita. A viagem, insalubre, sem condições mínimas de higiene e praticamente sem alimentação deixava muitos negros gravemente enfermos e um grande número falecia durante o percurso ou ao chegar. Os que morriam ao desembarcar, ou já nos armazéns em decorrência da fome e das doenças, eram lançados em covas rasas no cemitério a princípio improvisado, mas bastante duradouro do bairro de Santa Rita. Quando o vice-rei, o marquês do Lavradio, ordenou a mudança do mercado de escravos para a rua do Valongo em 1770 (atual Camerino) e o desembarque dos navios para a área de mesmo nome, às margens dos morros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, o antigo cemitério foi desativado e surgiu um novo cemitério dos pretos novos, maior e mais abandonado ainda do que o anterior, na rua da Harmonia, posteriormente caminho da Gamboa e rua do Cemitério, onde hoje é a rua Pedro Ernesto. Com a crescente importação de escravos africanos, a região do Valongo e o cemitério se ampliaram, e por conta da pouca profundidade das covas, era possível ver os ossos saltando da terra e sentir o odor característico que emanava do lugar, principalmente depois de chover, quando o terreno se tornava um alagadiço. Na maior parte das vezes, os corpos eram enterrados sem nenhum tipo de cerimônia religiosa ou rito funerário, e os ossos eram queimados para que cedesse lugar aos outros que constantemente chegavam, devendo-se mencionar que há indícios que alguns africanos chegavam ao cemitério ainda agonizando e morriam por lá mesmo. As reclamações dos moradores da região eram constantes, mas somente em 1863 o cemitério foi fechado. Desde 2009, o sítio arqueológico reconhecido pelo IPHAN é lugar de pesquisas sobre os escravizados e a cultura africana.

[6] Assim‌ ‌eram‌ ‌conhecidos‌ ‌os‌ ‌traficantes‌ ‌e‌ ‌negociantes‌ ‌de‌ ‌escravos‌ ‌no‌ ‌Rio‌ ‌de‌ ‌Janeiro,‌ ‌a‌ ‌maior‌ ‌parte‌ ‌deles‌ ‌portugueses‌,‌ ‌que‌ ‌praticavam‌ ‌o‌ ‌comércio‌ ‌escravagista‌ ‌na‌ ‌região‌ ‌do‌ ‌Valongo.‌ ‌Toda‌ ‌a‌ ‌complexa‌ ‌estrutura‌ ‌de‌ ‌organização‌ ‌desse‌ ‌comércio,‌ ‌que‌ ‌envolvia‌ ‌comissários‌ ‌da‌ ‌alfândega,‌ ‌capitães‌ ‌dos‌ ‌navios,‌ ‌grandes‌ ‌negociantes,‌ ‌tropeiros,‌ ‌atravessadores,‌ ‌foi‌ ‌transferida‌ ‌para‌ ‌o‌ ‌Valongo‌ ‌ainda‌ ‌em‌ ‌fins‌ ‌do‌ ‌século‌ ‌XVIII,‌ ‌pelo‌ ‌marquês‌ ‌do‌ ‌Lavradio.‌ ‌Anteriormente,‌ ‌os‌ ‌escravos‌ ‌eram‌ ‌vendidos‌ ‌nas‌ ‌ruas‌ ‌da‌ ‌área‌ ‌central‌ ‌da‌ ‌cidade,‌ mormente‌ ‌nas‌ ‌proximidades‌ ‌do‌ ‌largo‌ ‌do‌ ‌Paço,‌ ‌na‌ ‌rua‌ ‌São‌ ‌José‌ ‌e‌ ‌arredores,‌ ‌ao‌ ‌alcance‌ ‌dos‌ ‌olhos‌ de‌ ‌moradores‌ ‌e‌ ‌estrangeiros‌ ‌que‌ ‌chegavam‌ ‌para‌ ‌conhecer‌ ‌a‌ ‌colônia.‌ ‌Assim,‌ ‌sob‌ ‌a‌ ‌alegação‌ ‌de‌ ‌proteger‌ ‌os‌ ‌cidadãos‌ ‌das‌ ‌doenças‌ ‌trazidas‌ ‌pelos‌ ‌navios‌ ‌negreiros‌ ‌e‌ ‌preservar‌ ‌a‌ ‌imagem‌ ‌da‌ capital‌ ‌do‌ ‌Brasil,‌ ‌esse‌ ‌mercado‌ ‌foi‌ ‌transferido‌ ‌para‌ ‌a‌ ‌região‌ ‌onde‌ ‌atualmente‌ ‌compreende‌ ‌as‌ áreas‌ ‌da‌ ‌Saúde,‌ ‌Gamboa‌ ‌e‌ ‌Santo‌ ‌Cristo.‌ ‌A‌ ‌região‌ ‌do‌ ‌Valongo‌ ‌abrigou‌ ‌o‌ ‌desembarque‌ ‌dos‌ ‌navios,‌ e‌ ‌a‌ ‌comercialização‌ ‌dos‌ ‌escravos,‌ ‌nos‌ ‌mercados,‌ ‌trapiches‌ ‌e‌ ‌casas‌ ‌dos‌ ‌negociantes‌ ‌que‌ ‌se‌ ‌localizavam‌ ‌na‌ ‌rua‌ ‌de‌ ‌mesmo‌ ‌nome‌ ‌(hoje‌ ‌rua‌ ‌Camerino).‌ ‌Os‌ ‌homens‌ ‌do‌ ‌Valongo,‌ ‌controlavam‌ o‌ ‌comércio‌ ‌de‌ ‌escravos‌ ‌no‌ ‌maior‌ ‌porto‌ ‌de‌ ‌desembarque‌ ‌de‌ ‌africanos‌ ‌da‌ ‌América,‌ ‌auferindo‌ grandes‌ ‌lucros.‌ ‌Segundo‌ ‌Manolo‌ ‌Fiorentino‌ ‌(1997)‌ ‌e‌ ‌João‌ ‌Fragoso‌ ‌(1998),‌ ‌o‌ ‌mercado‌ ‌de‌ ‌africanos‌ ‌tornou-se‌ ‌uma‌ ‌das‌ ‌atividades‌ ‌coloniais‌ ‌mais‌ ‌lucrativas,‌ ‌responsável‌ ‌pela‌ ‌fortuna‌ mercantil‌ ‌que‌ ‌colocaria‌ ‌tais‌ ‌mercadores‌ ‌no‌ ‌topo‌ ‌da‌ ‌hierarquia‌ ‌econômica ‌e‌ ‌social‌ ‌da‌ ‌colônia.‌ Mesmo‌ ‌depois‌ ‌da‌ ‌lei‌ ‌de‌ ‌1831‌ ‌que‌ ‌proibia‌ ‌o‌ ‌tráfico,‌ ‌muitos‌ ‌donos‌ ‌de‌ ‌armazéns‌ ‌continuaram‌ ‌a‌ trabalhar‌ ‌na‌ ‌clandestinidade,‌ ‌mas‌ ‌em‌ ‌condições‌ ‌mais‌ ‌difíceis‌ ‌por‌ ‌conta‌ ‌da‌ ‌inspeção‌ ‌inglesa.‌ ‌Os‌ negociantes‌ ‌continuaram‌ ‌lucrando,‌ ‌principalmente‌ ‌por‌ ‌conta‌ ‌do‌ ‌aumento‌ ‌do‌ ‌preço‌ ‌do‌ ‌cativo,‌ todavia‌ ‌a‌ ‌atividade‌ ‌tornou-se‌ ‌mais‌ ‌arriscada.‌ ‌A‌ ‌partir‌ ‌de‌ ‌1850,‌ ‌quando‌ ‌o‌ ‌tráfico‌ ‌é‌ definitivamente‌ ‌extinto,‌ ‌o‌ ‌comércio‌ ‌interno‌ ‌de‌ ‌escravos‌ perdurou,‌ ‌entretanto,‌ ‌parte‌ dos‌ ‌comerciantes‌ ‌passaria‌ ‌a‌ ‌dedicar‌ ‌seus‌ ‌capitais‌ ‌a‌ ‌outras‌ ‌atividades‌ ‌comerciais‌ ‌e‌ ‌a‌ ‌indústria.‌ ‌

[7] Em 1770, o marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, decidiu transferir o desembarque dos navios negreiros (também chamados navios de escravatura) e o comércio de escravos da área central do Rio de Janeiro para uma região mais afastada, conhecida como Valongo, próximo ao morro da Conceição. O mercado de escravos funcionava, até então, no meio da rua Direita, próximo à rua do Cano e à rua de São José, e em outras ruas estreitas do centro da cidade. Sua intenção, ao promover a mudança do mercado para uma área ainda pouco ocupada, parece ter sido evitar, principalmente aos olhos dos estrangeiros, nobres e recém-chegados que desembarcavam na cidade no cais defronte ao Largo do Paço, um espetáculo chocante de homens, mulheres e crianças seminus, geralmente fracos e doentes, em exposição, à venda pelas ruas do Centro. Logo que o Cais do Valongo foi construído (em 1817 passando a se chamar Cais da Imperatriz – com a chegada da princesa Leopoldina) e o porto e o mercado foram transferidos para lá – entre as atuais regiões da Saúde e Gamboa –, a população da área adensou, trapiches, armazéns, mercados, pequenos comércios e residências dos negociantes e traficantes de escravos cresceram nos arredores; pântanos foram aterrados e ruas abertas. Ao desembarcar dos navios, os negros africanos escravizados eram conduzidos aos armazéns e mercados, onde eram alimentados, minimamente vestidos, recebiam cuidados de saúde e higiene (para se recuperarem da viagem e das doenças, e não morrerem) e separados, por idade, nacionalidade e sexo. A maioria dos escravos do Valongo era de homens jovens, entre 13 e 24 anos. No início do século XIX, o movimento comercial da região começou a sofrer um pequeno declínio devido, principalmente, às tentativas de interrupção do tráfico negreiro, primeiramente em 1831, intensificando-se após a lei de 1850 que efetivamente extinguiu o tráfico (abolição gradual do tráfico de escravos). Posteriormente, essa região ficou conhecida por ser habitada pela população mais pobre da cidade que, ao longo dos anos, foi subindo os morros em busca de moradia. Tendo em vista a grande concentração de negros (ex-escravos e seus descendentes), a região do Valongo caracterizou-se por manter vivas as tradições da cultura africana, até os dias de hoje.

[8]escravidão se estabelece sob o instituto da violência. A dor era inerente à vida dos escravos e se faz presente ainda hoje nos documentos que dizem respeito a castigos, maus tratos e a principal forma de identificação dos negros: as marcas feitas a ferro quente. Havia três tipos de marcas, as da própria nação africana, culturais, que identificavam a comunidade de origem ou funcionavam como adorno, como desenhou Jean-Baptiste Debret em duas pranchas de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil; as feitas pelos negociantes e proprietários, e as que serviam como punição, para que se reconhecesse quem fugiu ou cometeu algum delito. Ao chegar ao porto de onde sairia o navio negreiro, ainda na África, os escravos eram marcados com as iniciais do traficante responsável por eles, e ao chegar ao Brasil, recebiam novas marcas, desta vez com as iniciais de seus proprietários. Essa prática se repetia quantas vezes fosse preciso, ou seja, a cada vez que o escravo fosse vendido, seria novamente marcado. Embora muitos deles já tivessem marcas de origem, as feitas pelos comerciantes tinham outro significado. Elas se tornavam cicatrizes, quase sempre inalteráveis, que serviam para evitar fugas e, caso elas ocorressem, localizar mais facilmente o escravo. D. Manuel, rei de Portugal, foi um dos primeiros a institucionalizar a marca, no início do século XVI, utilizando-se primeiramente desse recurso nos escravos da Coroa. Outra marca comum era a cruz, gravada no peito dos cativos que haviam sido batizados. Mesmo que algumas vezes vozes se levantassem contra essa agressão, ela somente se extinguiu por um curto momento, entre 1813 e 1818, por razões humanitárias, mas a prática logo foi restabelecida por necessidade de racionalização do negócio negreiro. Os corpos eram marcados em lugares de fácil visualização, como peito, braço, ombros, no ventre, na coxa e até na face. Em 1741 Gomes Freire de Andrade, governador da capitania do Rio de Janeiro, instituiu que os escravos fugitivos seriam marcados com um F (de fugido) quando fossem encontrados, e seriam obrigados a usar doravante um cordão de estacas. Caso se apreendesse um escravo em fuga já com aquela marca F, este teria uma punição mais severa e exemplar, uma orelha cortada. As marcações a ferro quente como punição, bem como a mutilação, foram extintas com o Código Criminal do Império de 1832.

[9] Pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de JaneiroBahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[10] A Intendência de Polícia foi uma instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral da Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro, sendo responsável pela manutenção da ordem, o cumprimento das leis, pela punição das infrações, além de administrar as obras públicas e organizar um aparato policial eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas perniciosas e subversivas. Na prática, entretanto, a Polícia da Corte esteve também ligada a outras funções cotidianas da municipalidade, atuando na limpeza, pavimentação e conservação de ruas e caminhos; na dragagem de pântanos; na poda de árvores; aterros; na construção de chafarizes, entre outros. Teve uma atuação muito ampla, abrangendo desde a segurança pública até as questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais, relacionados a conflitos conjugais e familiares como mediadora de brigas de família e de vizinhos, entre outras atribuições. O aumento drástico da população na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, da população africana circulando nas ruas da cidade a partir de 1808, esteve no centro das preocupações das autoridades portuguesas, e nela reside uma das principais motivações para a estruturação da Intendência de Polícia que, ao contrário do que vinha ocorrendo no Velho Mundo, deu continuidade aos castigos corporais junto a uma parcela específica da população. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil na primeira metade do século XIX, e apresentava um caráter também político, uma vez que vigiava de perto as classes populares e seu comportamento, com ou sem conotação ostensiva de criminalidade. Um dos traços mais marcantes da manutenção desta ordem política, sobreposta ao combate ao crime,  se expressa em sua atuação junto à população negra – especialmente a cativa – responsabilizando-se inclusive pela aplicação de castigos físicos por solicitação dos senhores, mediante pagamento. O primeiro Intendente de Polícia da Corte foi Paulo Fernandes Vianna, que ocupou o cargo de 1808 até 1821, período em que organizou a instituição. Subordinava-se diretamente a d. João VI, e a ele prestava contas através dos ministros. Durante o período em que esteve no cargo, percebe-se que muitas funções exercidas pela Intendência ultrapassavam sua alçada, em especial àquelas relacionadas à ordem na cidade e às despesas públicas, por vezes ocasionando conflitos com o Senado da Câmara. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros.

[11] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

 

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