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Comentário

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 28 de Outubro de 2021, 18h39 | Última atualização em Terça, 18 de Janeiro de 2022, 14h16

Crimes e polícia no Brasil colonial

 

Renata William Santos do Vale
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
Pesquisadora do Arquivo Nacional

 

Em 1808, com a chegada da corte em fuga das guerras napoleônicas na Europa, o Rio de Janeiro tornou-se a capital do Império Atlântico português. A cidade colonial precisava ser modernizada para receber o contingente de milhares de pessoas que aqui chegaram. O Rio de Janeiro não tinha moradias suficientes para a nobreza portuguesa, e as ruas estreitas, sem pavimentação, escuras e sujas não atendiam aos padrões europeus de uma capital imperial. Outro “problema” era a grande massa de escravos que ocupava e circulava pelas ruas da cidade, nas suas jornadas diárias, e que dava um perfil negro à nova capital – o que somente aumentou ao longo do período joanino.

Uma das primeiras instituições criadas após a chegada do príncipe regente d. João foi a Intendência de Polícia da Corte, nos mesmos moldes da que fora estabelecida em Portugal em 1760, presidida pelo desembargador Diogo Inácio de Pina Manique. A função da intendência, em ambos os lados do Atlântico, era policiar as cidades, o que no sentido da época era sinônimo de civilizar; no nosso caso, tornar o Rio de Janeiro a nova capital do império português. A reorganização da cidade, dando-lhe novas feições, com obras, consertos, mudanças de hábitos e emissão de editais para controlar o “bem viver” dos moradores, complementava a função de controlar o comportamento dos súditos, vigiar as classes potencialmente perigosas (vadios, prostitutas, capoeiras, pobres, mas, sobretudo, escravos), evitar desordens e coibir e punir os crimes e delitos. Nos anos anteriores do período colonial, a repressão ao crime era descentralizada, cabendo a cada capitania apurar, combater, julgar e punir o crime e os criminosos, na competência dos juízes de fora. Crimes menores eram resolvidos no âmbito local; crimes mais graves eram encaminhados para o vice-rei, como se pode observar na correspondência deste com os capitães-generais nos fundos Vice-Reinado e Secretaria de Estado do Brasil. Esse esquema era válido para os homens livres, os escravos estavam à mercê da justiça privada, de seus senhores, feitores e capitães do mato.

Com a criação da intendência – e, embora a amplitude do órgão se estendesse a toda a colônia, ela era mais atuante e forte no Rio de Janeiro –, há uma centralização na condução das averiguações e na aplicação da justiça no território do Brasil. Todo um novo aparato policial é criado, com juízes especiais para tratar do crime e com o estabelecimento da Guarda Real da Polícia, embora o código criminal que estava em vigor ainda fossem as Ordenações Filipinas, de 1603, livro V, relativo ao direito penal. A maior parte das punições oferecida nas Ordenações aos mais variados tipos de crimes parecia muito mais rígida e grave do que na prática se efetuava. Para crimes tão diferentes como de lesa-majestade, moeda falsa, sodomia, dormir com mulher casada, estabelecimento de pesos e medidas falsos, ou furtos, por exemplo, a pena prevista era a morte natural (em alguns casos na fogueira). Sabe-se que a pena capital não era empregada em todas essas circunstâncias o tempo todo, na maioria das vezes sendo comutada para degredo ou trabalhos forçados em galés, e cabia aos juízes promoverem a prisão dos ofensores e estabelecerem as penas reais. Na prática, as punições mais comuns eram, além das galés e do degredo, a prisão, com ou sem trabalhos forçados, as fianças, ou multas, o recrutamento para as tropas regulares ou das milícias, e os açoites, preferencialmente para os escravos. E não custa lembrar que a função da punição naquele tempo não era regenerar ou recuperar o criminoso, mas puni-lo como em uma vingança, uma retribuição pelo mal causado.[1]

O primeiro intendente-geral de Polícia da Corte, o desembargador Paulo Fernandes Viana, regeu a instituição com mão de ferro, como se pode perceber após um exame atento da documentação deste órgão, reunida, principalmente, no fundo Polícia da Corte e, ainda, no fundo Diversos GIFI. É a partir da criação da intendência que os crimes começam a ser combatidos mais amiúde, com o intuito também de disciplinar a população e evitar o crime, as desordens e as temidas rebeliões escravas. É importante ressaltar que ao longo do período joanino houve a entrada do maior contingente de escravos no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro.

 

o intendente, o magistrado do Rio, treinado em Coimbra (Paulo Fernandes Viana), coordenou o primeiro esforço sistemático para coibir a criminalidade no Brasil. “Com ampla e ilimitada jurisdição”, a intendência juntou esforços policiais, antes limitados e incompatíveis, sob a liderança de um desembargador, com poderes legislativos, executivos e judiciários. Para acabar com a desordem pública e com o crime dentro da cidade, o intendente também tinha à sua disposição a divisão militar da guarda real da polícia, criada em 1809. Suas quatro companhias, distribuídas por toda a cidade, faziam rondas noturnas, dispersavam ajuntamentos após o pôr do sol, verificavam que os cafés e as casas de jogos fechavam nos seus respectivos horários, e prendiam qualquer suspeito de vadiagem e de atividade criminosa.[2]

 

Neste Rio de Janeiro cuja presença escrava urbana – e as ameaças constantes de desordens causadas por ela – era muito grande, especialmente de escravos ao ganho circulando pelas ruas da cidade, a Intendência de Polícia exercia o papel de polícia e também de juiz, estabelecendo e aplicando as penas devidas, fossem elas a prisão ou os açoites. Os castigos físicos eram geralmente preferidos às prisões ou galés, pois, além de serem punições públicas e exemplares, não oneravam os proprietários, se cumpriam mais rapidamente, e em menos tempo o escravo voltava ao trabalho. No espaço urbano, quem fazia o papel do feitor,[3] de controle e punição dos crimes, era a polícia, o Estado, no que antes era papel exclusivo do proprietário. Assim, na documentação da Polícia da Corte encontram-se com grande frequência os crimes cometidos por escravos e as punições estabelecidas pelos juízes e pelo intendente, a serem normalmente imputadas e executadas na mesma hora, não havendo julgamento, como acontecia com os homens livres.

Não há muitos estudos sobre a criminalidade no período colonial, predominam as reflexões sobre a polícia, sobre as formas de punição, sobre as leis e o direito, e sobre a violência contra os escravos, em forma de castigo. As pesquisas sobre os crimes se concentram, preferencialmente, nos períodos do Império e da República. Uma breve análise sobre as ementas de documentos selecionados para este tema nos demonstra alguns elementos importantes: a maior parte dos crimes está relacionada com a escravidão e com os escravos, fossem contra eles ou cometidos por eles: capoeiragem, jogos, desordens nas ruas ou em tabernas, homicídios, furto de escravos por ciganos, agressão, e com objetos considerados ilegais, como no caso do escravo José Benguela, que foi preso por portar um garfo. Pode parecer um exagero, mas, especialmente à noite, escravos não eram autorizados a circularem pela cidade, quanto mais a carregarem algum objeto que pudesse ser confundido ou usado como arma para ferir ou matar outrem, sobretudo seus donos. Um garfo, apesar de pouco usual, poderia potencialmente ser usado contra alguém, como os guardas da polícia ou o seu dono.[4]

O estudo dos crimes e delitos nos desvela e nos ajuda a perceber uma série de tensões existentes na sociedade, e, em alguma medida, certas formas de contestação do sistema escravista. A população escrava do Rio de Janeiro (e de toda a colônia) era vista como um possível foco de violência, o que levava a um medo constante de rebeliões ou de uma grande insurreição escrava (não custa lembrar que a revolta acontecida no Haiti fora em 1791) em um país com um número tão grande de cativos. Por essa razão, escravos e forros eram considerados criminosos em potencial, e essa população era constantemente vigiada pelas forças repressoras. Assim, a maior preocupação da intendência era impedir os ajuntamentos de escravos e libertos, fossem danças, jogos, ou a temida capoeira, a fim de evitar desordens. Vadiagem e bebedeiras eram alvos de prisão sem explicações, assim como atitudes “suspeitosas”, como simplesmente ficarem parados em uma esquina à toa. Boa parte dos delitos dos escravos, que podem ser considerados também crimes contra a propriedade, manifestações de desobediência e afronta à ordem e contra o sistema escravista, eram furtos (muitas vezes de itens necessários à sobrevivência, como alimentos e vestimentas), desordens e porte de “armas”. Esses comportamentos frequentes e afrontosos levavam a um estado permanente de repressão para o controle social e a manutenção da ordem escravista. Outros crimes comuns entre a população escrava, liberta, de cor e pobre eram a vadiagem, as bebedeiras, os jogos de azar, insultos e agressões físicas, principalmente contra praças e guardas, ajuntamentos irregulares, permanência na rua depois do horário estipulado, e capoeiragem. O combate aos grupos de capoeiras era constante e muito intenso.[5]

Escravos eram presos por facadas, brigas, agressões, pedradas em transeuntes. Não era comum serem presos por crimes de violência contra os senhores – provavelmente resolvidos no âmbito das casas senhoriais, nem chegariam a envolver a polícia. Esta se encarregava de vigiar e coibir a violência nas ruas, as fugas e a formação de quilombos. Ao longo do período joanino, o endurecimento de regras e de punições foi uma medida adotada para desencorajar pelo exemplo as fugas, as agressões e as lutas. Paradoxalmente, o aumento da repressão também levou ao crescimento da violência, com mais desordens, tentativas de fuga e atentados. As punições aplicadas pela polícia aos escravos urbanos não eram as mesmas no início e no final do período joanino: se por volta de 1808 a quantidade de açoites para um crime como porte de armas variava de cinquenta a duzentos, no final da permanência da corte, em 1821, passou a trezentas chicotadas mais trabalhos forçados nas obras públicas da intendência, como a construção da estrada da Tijuca. Havia também prisões e trabalhos forçados, em caso de crimes mais graves, e raramente foi aplicada a pena de morte. O espaço urbano criava um certo desequilíbrio nas relações dos escravos com seus donos, pois o sistema ao ganho dava aos escravizados alguma liberdade de circulação e de associação nas ruas. Criava ainda divergências entre o Estado e os senhores, uma vez que o foco da intendência era combater o crime contra a ordem pública e os donos provavelmente preferiam lidar com os delitos internamente, de modo a não comprometer a disponibilidade da mão de obra, e não aceitavam sem reclamação a interferência do governo nas suas propriedades.

Outros crimes que se destacam entre os documentos selecionados são os cometidos contra as mulheres, e alguns praticados por elas. Os mais comuns eram em sua maioria de foro privado, como defloramentos, raptos, adultério, mas também prostituição e até homicídio. A maior parte das penas reservadas a quem cometesse um desses crimes era a morte ou o degredo, além de prisão. Um elemento, entretanto, que precisa ser levado em consideração é o fato de no caso de defloramentos ou estupros a pena ser retirada se o agressor concordasse em se casar com a vítima. Nas acusações de adultério (que só muito recentemente deixou de ser crime, em 2005), o marido que matasse a esposa, mas comprovasse a traição, estaria livre das penas, principalmente se fosse fidalgo. No entanto, se não fosse fidalgo, e matasse um amante com tal distinção, provavelmente seu destino seria a prisão ou o degredo, já que a morte de um homem-bom não poderia passar sem punição.[6]

Os documentos mostram as tensões que havia entre os gêneros no mundo luso-brasileiro e a precariedade da condição feminina. Entre os manuscritos transcritos para a seção Sala de Aula destacamos uma tentativa de defloramento, com violência, de um forro à filha de dona Gerarda Maria;[7] o alfaiate que agrediu violentamente a mulher (e uma escrava que testemunhou a agressão) com uma tesoura e a deixou em estado “miserável”, tanto que foi preciso chamar o cirurgião-mor para certificar o crime do “monstro de crueldade”;[8] e o caso do vigário Caetano Gomes de Santa Rita, que denunciou a presença de três meretrizes na localidade de Simão Pereira, nas Minas Gerais, que causavam “depravação” e tinham uma conduta “escandalosa”, e por isso deveriam ser presas em Barbacena.[9] Entretanto, outro crime que merece destaque é o imbróglio envolvendo o boticário Manoel Gonçalves Vale contra a esposa adúltera Maria Teodora.[10] Casados, os dois viveram algum tempo juntos, mas depois a mulher, segundo a versão do marido, entregou-se a uma vida de “devassidão”, e teve diversos amantes e filhos fora do casamento, mesmo estando recolhida em casas de correção e na Santa Casa de Misericórdia. Aparentemente, o marido tentou conter seus casos ao mandá-la para recolhimentos, o que não adiantou, pois Teodora conseguia fugir ou levava os caixeiros, cirurgiões e outros amantes para dentro das instituições. Ela havia, inclusive, tentado mais de uma vez matar o boticário, que por pouco não morreu, e ficou quase arruinado. Por causa desses crimes, foi condenada à “morte cível”, ou ao degredo, em Santa Catarina por oito anos e nas Índias por dez, mas cumpriu somente a pena em território brasileiro, e depois de findo o período retornara à Corte. É quando Manoel Gonçalves faz a petição de graça real solicitando que a mulher fosse desterrada e presa em uma localidade longínqua, que permitisse a ele viver o resto de sua vida em segurança. Só temos o relato do marido nesse caso, mas ele evidencia que Maria Teodora não se contentou com o papel de esposa que desempenhou no início do casamento, e logo tomou as rédeas de seu destino em suas mãos, para o bem ou para o mal, caso fosse realmente culpada das tentativas de assassinato do marido. Não se deve esquecer que o pedido de graça real é a versão masculina dessa história, e que não pudemos encontrar as respostas da acusada às denúncias feitas sobre ela.

Para encerrar, merece atenção um último caso, a tentativa de defloramento da menina Rosalina.[11] Dona Maria Vitória de Magalhães pede a mercê da rainha de suspender o degredo a que havia sido condenada, ela e sua família, tendo deixado a cidade de Belém do Pará e sido obrigada a viver na vila de São José do Macapá, por decisão do governador José de Nápoles Telo de Menezes. Esse, por sua vez. procurava proteger o sobrinho, que havia atentado contra a honra da menina. O sobrinho do governador, Manoel Cabral Coutinho de Nápoles, ajudante de ordens, vinha há tempos tentando “corromper o honrado coração” da jovem, buscando “enamorá-la”, no que não tivera muito sucesso. Decidiu então tentar deflorá-la e corrompê-la (nos termos do documento) à força, mas não obteve sucesso, porque os vizinhos acudiram aos gritos da moça e impediram a ação do ajudante de ordens. No dia seguinte ao “notório escândalo”, o governador desterrou a moça e sua família para tentar abafar o caso do sobrinho, agindo, segundo d. Maria Vitória, de forma tirânica e despótica. A suplicante rogava a graça à rainha de reverter a condenação ao degredo para outra capitania. O caso revela, além da tentativa do governador de usar seu poder e seu cargo para encobrir um malfeito de seu parente, que as mulheres procuravam, por meios legais, se fazer ouvir, e embora não haja a resposta ao pedido de mercê, fica claro que elas também demandavam seus direitos, ainda que nos limites dos papéis que lhes eram atribuídos pela sociedade.

 

Notas

 

[1] BICALHO, Maria Fernanda. Crime e castigo em Portugal e seu Império. Topoi, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 224-231, 2000.

[2] SCHULTZ, Kirsten. Perfeita civilização: a transferência da corte, a escravidão e o desejo de metropolizar uma capital colonial. Rio de Janeiro, 1808-1821. Tempo, v. 12, n. 24, p. 10, 2008.

[3] Ver ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro (1808-1822). Petrópolis: Vozes, 1988.

[4] Devassa da Polícia sobre vários delitos. Polícia da Corte. Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1816. Arquivo Nacional, códice 401, fl.36v.

[5] Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Criminalidade escrava e controle social no Rio de Janeiro (1810-1821). Estudos Econômicos, São Paulo, v. 18, n. especial, p. 45-79, 1988.

[6] Ver Ordenações Filipinas, Livro V, título XXXVIII.

[7] Registro de ofícios expedidos da Polícia para o governo das armas da Corte, Marinha e mais patentes militares e ordenanças. Polícia da Corte. Simão Pereira, 29 de janeiro de 1816. Arquivo Nacional, códice 326, vol. 3, fl. 14v.

[8] Capitania do Rio de Janeiro. Vice-Reinado. São Marcos, 20 de setembro de 1802. Arquivo Nacional, caixa 746, pct. 1.

[9] Registro de ofícios expedidos da Polícia para o governo das armas da Corte, Marinha e mais patentes militares e ordenanças. Polícia da Corte. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1819. Arquivo Nacional, códice 326, vol. 3, fl. 14v.

[10] Ministério dos Negócios do Brasil, Ministério dos Negócios do Reino, Ministério dos Negócios do Reino e Estrangeiros, Ministério dos Negócios do Império e Estrangeiros. Instituições policiais. Diversos GIFI. [Rio de Janeiro, 1816]. Arquivo Nacional, 6J-83.

[11] Correspondência original dos governadores do Pará com a Corte, cartas e anexos. Negócios de Portugal. Pará, [1783]. Arquivo Nacional, códice 99, vol. 4.

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