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Expulsão de meretrizes

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 28 de Outubro de 2021, 20h55 | Última atualização em Quinta, 28 de Outubro de 2021, 20h56

Ofício expedido pelo comandante do distrito de Simão Pereira, José Pinto de Souza, dando ciência ao intendente de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana, do comportamento inadequado de três “meretrizes” no distrito de Simão Pereira, conforme denunciado pelo vigário local. Solicitava que elas fossem despejadas da região onde habitavam, e caso não obedecessem ao prazo estabelecido para saírem, pede que se ordene que elas fossem presas na cadeia de Barbacena.

 

Conjunto documental: Registro de ofícios expedidos da Polícia para o governo das armas da Corte, Marinha e mais patentes militares e ordenanças
Notação: cód. 326, vol. 3
Datas-limite: 1818-1822
Título do fundo: Polícia da Corte
Código do fundo: ØE
Argumento de pesquisa: criminalidade
Data do documento: 15 de janeiro de 1819
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 14v

 

Registro do ofício expedido ao comandante do distrito de Simão Pereira

Tendo-me representado o reverendo vigário Caetano Gomes de Santa Rita os males morais, e prejuízos que causam nesse distrito com a depravação de seus costumes, e escandalosa conduta de três meretrizes [1] Maria Ribeira, Joaquina, e Rosa, e outras companheiras, que residem desde o lugar denominado = as [ilegível] = até o moinho, como tudo melhor consta do seu requerimento incluso ordeno a Vossa Mercê, que logo que receber esta faça a notificar as sobreditas para despejarem do distrito dessa freguesia no termo peremptório de três dias, e não cumprindo prenda Vossa Mercê todas as que desobedecerem, e a minha ordem as remeta a prisão da cadeia[2] de Barbacena[3] dando-me logo parte de assim o haver cumprido para que eu possa dar providências posteriores ao ouvidor[4] dessa comarca = Deus Guarde a Vossa Mercê. Rio de Janeiro de 1819 = Paulo Fernandes Viana[5] = Senhor José Pinto de Souza comandante do distrito de Simão Pereira.

 

[1] Nas sociedades primitivas, a ausência de obstáculos à sexualidade tornava desnecessária a configuração de qualquer forma de prostituição. Esta seria, portanto, constitutiva do processo de socialização das civilizações antigas, com o surgimento da propriedade privada e o estabelecimento da monogamia e da sociedade patriarcal, fundada na subordinação das mulheres, públicas ou privadas, pela família, respaldada na figura do homem. Foi nas civilizações avançadas da Antiguidade que a prostituição se desenvolveu sob a forma tipicamente comercializada. No Brasil, a prática foi uma constante no período colonial. As primeiras prostitutas desembarcaram na América portuguesa ainda no primeiro século da colonização, estimuladas pelo Coroa portuguesa, que buscava, com a vinda de mulheres brancas, barrar a crescente mestiçagem entre homens brancos e indígenas. Prática tolerada na sociedade colonial, foram úteis para a valorização e consolidação do seu oposto: as mulheres “puras” ditas moças de família. Tornou-se uma forma de trabalho tanto para as mulheres que procuravam garantir sua sobrevivência, quanto para os senhores de escravos que exploravam sexualmente as cativas. O ato de prostituir-se não era considerado uma atividade criminosa no Brasil colonial, no entanto, alguns preceitos básicos deveriam ser respeitados, como não manter relações com outras mulheres ou parentes, não induzir que uma filha também se prostituísse e, ainda, não abandonar o caráter esporádico das relações, evitando gerar uma acusação de concubinato. As prostitutas, circulando livremente pelos logradouros e recebendo homens em suas casas, viviam uma realidade diretamente oposta à das mulheres ditas honradas, que aguardavam pelo casamento.

[2] O sistema prisional, baseado no encarceramento diferenciado e delimitado por penas variáveis, aparece no mundo contemporâneo (ou, pelo menos, na maior parte dele) como concretização de sanções impostas a indivíduos que quebram as regras estabelecidas. Na realidade, a privação da liberdade e o isolamento como punição em si – e também reeducação – surgiu na Europa. Não há registros na Antiguidade, por exemplo, do uso punitivo do encarceramento, utilizado na época como detenção temporária do suspeito até que a punição final fosse imposta, após julgamento. O banimento, a infâmia, a mutilação, a morte e a expropriação eram as penas mais recorrentes. Na Idade Média, o cenário era semelhante. O crescimento populacional, a urbanização e as graves crises de fome que marcaram a Idade Moderna resultaram em aumento de criminalidade e em revolta social, movimentos estes que, às vezes, se sobrepunham. Diante dessa situação, as penas cruéis e a própria pena de morte, aplicadas em público, utilizadas na Idade Média em resposta a crimes frívolos (roubar um pão, ofender o senhorio, blasfemar), deixaram de ser adequadas, posto que poderiam facilmente causar um levante popular. Além disso, cada vez mais se considerava o espetáculo bizarro das punições públicas uma afronta ao racionalismo e ao humanismo que marcaram o século XVIII. Se no Antigo Regime o sistema penal se baseava mais na ideia de castigo do que na recuperação do preso, no século XVIII se intensificam as tentativas, esboçadas no século anterior, de transformar as velhas masmorras, cárceres e enxovias infectas e desordenadas, onde se amontoavam criminosos, em centros de correção de delinquentes. Em boa parte do mundo, entretanto, tais ideias demorariam a sair do papel. No Brasil, no início do século XIX, muitas fortalezas funcionaram como prisões para corsários, amotinados e, algumas vezes, para criminosos comuns. Na maior parte do vasto território da colônia, as cadeias eram administradas pelas câmaras municipais e, geralmente, localizavam-se ao rés do chão das mesmas, ou nos palácios de governo. A tortura, meio de obtenção de informações conforme previsto pelas Ordenações Filipinas, era utilizada tanto em casos de prisão por motivos religiosos, quanto em prisioneiros comuns. As cadeias não passavam de infectos depósitos de pessoas do todo o tipo: desde pessoas livres, já condenadas ou sofrendo processo, até suspeitos de serem escravos fugidos, prostitutas, indígenas, loucos, vagabundos. Proprietários, homens ricos e influentes e funcionários da Coroa permaneciam em um ambiente separado. Para os escravos, havia uma cadeia denominada Calabouço, embora também fossem encerrados em outros estabelecimentos.

[3] A vila de Barbacena, antes arraial da Igreja Nova de Campolide, foi fundada em 1791, embola o povoamento existisse desde pelo menos o início do século XVIII, no entorno do rio das Mortes, da fazenda Borda do Campo e do caminho novo das Minas para o Rio de Janeiro. Essa fazenda, de propriedade do inconfidente José Aires Gomes foi tomada pelo Fisco depois da sentença de degredo para a vida em Angola imputada ao dono e sua família. A vila de Barbacena tinha vocação agrícola e pecuarista desde a época da extração do ouro e diamantes, mas começou a prosperar e crescer em produção e população depois de a produção mineral ter entrado em declínio, no início do XIX, abastecendo de alimentos e carnes além da própria Comarca do Rio das Mortes, também o Rio de Janeiro. O Termo de Barbacena compreendia os distritos da vila de Barbacena, do Engenho do Mato, de Ibitipoca e de Simão Pereira.

[4] O cargo de ouvidor foi instituído no Brasil em 1534, como a principal instância de aplicação da justiça, atuando nas causas cíveis e criminais, bem como na eleição dos juízes e oficiais de justiça (meirinhos). Até 1548, a função de justiça, entendida em termos amplos, de fazer cumprir as leis, de proteger os direitos e julgar, era exclusiva dos donatários e dos ouvidores por eles nomeados. Neste ano foi instituído o governo-geral e criado o cargo de ouvidor-geral, limitando-se o poder dos donatários, sobretudo em casos de condenação à morte, entre outros crimes, e autorizando a entrada da Coroa na administração particular, observando o cumprimento da legislação e inibindo abusos. Cada capitania possuía um ouvidor, que julgava recursos das decisões dos juízes ordinários, entre outras ações. O ouvidor-geral, por sua vez, julgava apelações dos ouvidores e representava a autoridade máxima da justiça na colônia. Sua nomeação era da responsabilidade do rei, com a exigência de que o nomeado fosse letrado. Dentre as suas muitas atribuições, cabia-lhe informar ao rei do funcionamento das câmaras e, caso fosse necessário, tomar qualquer providência de acordo com o parecer do governador-geral. Ao longo do período colonial, o cargo de ouvidor sofreu uma série de especializações em função das necessidades administrativas coloniais. Dentre os cargos instituídos a partir de então, podemos citar o de ouvidor-geral das causas cíveis e crimes em 1609 (quando da criação da Relação do Brasil, depois desmembrada em Relação da Bahia e do Rio de Janeiro); o de ouvidor-geral do Maranhão em 1619, quando há a criação do Estado do Maranhão; e o de ouvidor-geral do sul em 1608, quando foi criada a Repartição do Sul.

[5] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

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