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Tentativa de defloramento

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 28 de Outubro de 2021, 21h35 | Última atualização em Quinta, 28 de Outubro de 2021, 21h35

Ofício expedido ao comandante do distrito de Simão Pereira relatando que Marcelino da Costa, crioulo forro, encontra-se preso na cadeia por ter tentado deflorar a filha de Gerarda Maria.

 

Conjunto documental: Registro de ofícios expedidos da Polícia para o governo das armas da Corte, Marinha e mais patentes militares e ordenanças
Notação: cód. 326, vol. 3
Datas-limite: 1818-1822
Título do fundo: Polícia da Corte
Código do fundo: ØE
Argumento de pesquisa: criminalidade
Data do documento: 29 de janeiro de 1816
Local: Simão Pereira
Folha(s): 14v

 

Registro de outro ao mesmo ministro

Pela defloração com violência[1], que pretendia fazer Marcelino da Costa crioulo forro[2], preso na cadeia[3], em uma filha de Gerarda Maria, e [que] consta da parte inclusa por cópia, proceda Vossa Mercê ao processo, que competir, e mandará ao preso digo mandará abrir ao preso assento à sua ordem e deve ouvir a queixosa para formalizar a queixa judicialmente. Deus Guarde a Vossa Mercê. Rio 29 de janeiro de 1816 = Paulo Fernandes Viana[4] = Senhor [Desembargador] Juiz do Crime[5] do bairro da Sé[6].

 

[1] Até ao menos a metade do século XX, a virgindade das mulheres tinha um valor especial na sociedade, sendo elemento indicativo de honra, da mulher e de sua família, sobretudo das ricas famílias patriarcais, e de certa forma, moeda de troca para a realização de bons casamentos entre iguais. Em uma sociedade na qual o poder pátrio determinava o destino das filhas que, depois de casadas, passavam para a “posse” do marido, as fronteiras entre o que era consentido e o excesso de violência também eram precárias. Havia uma diferenciação não explícita entre estupro e defloramento, no qual o primeiro envolvia formas de coação violenta e no segundo mais uma persuasão, fosse por sentimentos ou promessas. Na prática, os casos de defloramento muitas vezes envolviam agressão física contra a mulher e o seu não-consentimento no ato sexual. Os crimes de sedução e desonra já estavam previstos desde as Ordenações Afonsinas (1446-1448), mas foram consideravelmente aprimorados nas Ordenações Manuelinas (1512-1603) e Filipinas (1595), que estabeleciam punições mais duras e tratavam menos as mulheres como culpadas ou aliciadoras dos agressores. Não custa reforçar que as leis eram aplicadas entre iguais. Homens de posições sociais e cor diferentes não teriam as mesmas punições, os fidalgos, quase sempre, eram punidos com degredo, prisão e indenizações, já aos comuns, à plebe, ficavam reservadas as penas mais graves que incluíam a de morte. Uma questão frequentemente mencionada para os crimes de defloramento trata sobre o casamento do agressor com as ofendidas, “solução” para o crime que acabava com a ofensa e suspendia automaticamente as penas, o que não era sempre o caso, ao menos entre as famílias da boa sociedade colonial. Tanto os pais quanto as próprias mulheres deveriam concordar com o casamento, o que frequentemente ocorria, caso o candidato a noivo fosse homem de nascimento e posses inferiores às da possível noiva. Quando havia o casamento, era preciso que o pai concordasse com a suspensão da pena, o que poderia não acontecer. Nos casos de não haver casamento, ficava o agressor, além de sujeito às punições já mencionadas, obrigado a custear o casamento da mulher agredida e pagar uma espécie de indenização pela perda da virgindade, o que se chamava “demandar a virgindade”. A família agredida precisaria solicitar tal indenização, que teria o efeito de eliminar a mancha da honra da família e tornar a moça novamente “de qualidade” para um bom casamento. No Brasil, o crime de sedução e defloramento passou a ser tratado como estupro somente no Código Criminal de 1890 e no Civil de 1916, embora as punições continuassem a existir também no Código Criminal de 1830.

[2] Eram considerados forros os ex-escravizados que haviam obtido a alforria, por meio de uma carta, por testamento ou no momento do batismo. Até a segunda metade do século XVII encontra-se a expressão “índio forro” com o sentido de libertar gentio como eram chamados os indígenas da suposta barbárie em que viviam, pela ótica cristã. Para Eduardo França Paiva, as alforrias são um componente da escravidão e já no mundo antigo eram praticadas com frequência. Alforria, como lembra esse autor, é um termo de origem árabe e equivale a libertar. Mas no mundo romano as libertações de escravos já ocorriam com frequência, chamadas de manumissões. Entre os ibéricos, com a escravidão introduzida no Novo Mundo, os forros ou resgatados foram sua imediata contrapartida. A ideia de resgate era bem conhecida dos portugueses que haviam tido que resgatar cristãos cativos no Norte da África. A partir do século XVII o aumento de africanos escravizados na América portuguesa provocou também a quantidade e variedade de tipos de alforrias, compradas, obtidas por negociação entre senhor e escravo, prometidas. A área das minas foi um catalizador para entrada de um imenso contingente de escravos no Brasil e fez surgir outra configuração social, com vilas e arraiais nos quais a maioria era de escravos, forros e nascidos livres. Ao final do setecentos torna-se comum que libertos passassem a possuir escravos, que da mesma forma lograram ser alforriados dentro da mesma lógica dos seus proprietários forros. Mas, como conclui França, a ascensão desses forros não apagava o seu passado naquela sociedade escravista. A combinação do nome com a categoria imposta e a condição jurídica acompanhava os “pretos forros” ou “mulato forro” até que acabasse por se dissipar. (Cf. FRANÇA, E. O. Alforria. In: GOMES, F., SCHWARCZ, Lilia M. Dicionário da escravidão e liberdade, 2018)

[3] O sistema prisional, baseado no encarceramento diferenciado e delimitado por penas variáveis, aparece no mundo contemporâneo (ou, pelo menos, na maior parte dele) como concretização de sanções impostas a indivíduos que quebram as regras estabelecidas. Na realidade, a privação da liberdade e o isolamento como punição em si – e também reeducação – surgiu na Europa. Não há registros na Antiguidade, por exemplo, do uso punitivo do encarceramento, utilizado na época como detenção temporária do suspeito até que a punição final fosse imposta, após julgamento. O banimento, a infâmia, a mutilação, a morte e a expropriação eram as penas mais recorrentes. Na Idade Média, o cenário era semelhante. O crescimento populacional, a urbanização e as graves crises de fome que marcaram a Idade Moderna resultaram em aumento de criminalidade e em revolta social, movimentos estes que, às vezes, se sobrepunham. Diante dessa situação, as penas cruéis e a própria pena de morte, aplicadas em público, utilizadas na Idade Média em resposta a crimes frívolos (roubar um pão, ofender o senhorio, blasfemar), deixaram de ser adequadas, posto que poderiam facilmente causar um levante popular. Além disso, cada vez mais se considerava o espetáculo bizarro das punições públicas uma afronta ao racionalismo e ao humanismo que marcaram o século XVIII. Se no Antigo Regime o sistema penal se baseava mais na ideia de castigo do que na recuperação do preso, no século XVIII se intensificam as tentativas, esboçadas no século anterior, de transformar as velhas masmorras, cárceres e enxovias infectas e desordenadas, onde se amontoavam criminosos, em centros de correção de delinquentes. Em boa parte do mundo, entretanto, tais ideias demorariam a sair do papel. No Brasil, no início do século XIX, muitas fortalezas funcionaram como prisões para corsários, amotinados e, algumas vezes, para criminosos comuns. Na maior parte do vasto território da colônia, as cadeias eram administradas pelas câmaras municipais e, geralmente, localizavam-se ao rés do chão das mesmas, ou nos palácios de governo. A tortura, meio de obtenção de informações conforme previsto pelas Ordenações Filipinas, era utilizada tanto em casos de prisão por motivos religiosos, quanto em prisioneiros comuns. As cadeias não passavam de infectos depósitos de pessoas do todo o tipo: desde pessoas livres, já condenadas ou sofrendo processo, até suspeitos de serem escravos fugidos, prostitutas, indígenas, loucos, vagabundos. Proprietários, homens ricos e influentes e funcionários da Coroa permaneciam em um ambiente separado. Para os escravos, havia uma cadeia denominada Calabouço, embora também fossem encerrados em outros estabelecimentos.

[4] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

[5] Atribuição dada ao magistrado com competências semelhantes às do juiz de fora, mas restritas à esfera criminal. A ele, como aos juízes de fora, cabia realizar devassas sobre crimes acontecidos nos bairros (ou cidades) de sua jurisdição, visando a solucioná-los e a prender os culpados; executar as sentenças estabelecidas pelo intendente geral de Polícia da Corte e, especificamente no Brasil, cobrar as décimas – impostos pagos pelos proprietários de prédios urbanos. Os juízes do crime que atuavam no Brasil seguiam o regimento dos ministros criminais de Lisboa, cujas atribuições eram as mesmas. Com a chegada da corte, d. João criou mais postos de juiz do crime (alvará de 27 de junho de 1808), principalmente para o Rio de Janeiro, prevendo um incremento da criminalidade em decorrência do brusco e significativo aumento populacional que a cidade sofrera com o desembarque da família real e da corte, pretendendo incrementar a “segurança e a tranquilidade de seus vassalos”. Cada juiz do crime respondia por um bairro ou freguesia, como a da Candelária, da Sé, de São José e de Santa Rita, por exemplo.

[6] Freguesia que compreendia a região ao redor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo no Rio de Janeiro e limitava-se com o bairro de São José. Construída em 1570 em cumprimento a uma promessa, a Capela de Nossa Senhora da Expectação e do Parto foi doada pela Câmara, em 1589, aos carmelitas, que iniciaram a construção da atual igreja em 1761 – a sagração deu-se em 1770. Em 1808, com a chegada da família real, a Igreja foi convertida em Capela Real (mesmo que ainda incompletas as obras da fachada). No convento anexo foi instalada a rainha d. Maria I e suas damas, e outros órgãos, como a Ucharia Real e a Real Biblioteca. A Capela Real foi palco da sagração de d. João VI em 1818 e do casamento de d. Pedro com d. Leopoldina em 1817, dentre outros importantes eventos. Somente durante o primeiro reinado, já então denominada Capela Imperial, foram finalizadas as obras. Foi sede episcopal durante todo o Império e parte do período republicano. Em 1977 uma nova Catedral Metropolitana foi concluída. A partir de então passou a ser conhecida como a Antiga Sé (ou Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé).

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