Depoimento de Sebastião Francisco Figueira, morador da freguesia de Campo Grande (RJ), sobre um preto forro de Minas que andava curando as filhas de Manoel Luiz e Francisco José, que “se achavam com vários espíritos malignos”.
Conjunto documental: Secretaria de Estado do Ministério do Reino
Notação: caixa 733
Datas-limite: 1775-1873
Código do fundo: 59
Título do fundo: Negócios de Portugal
Argumento de Pesquisa: Feitiçaria
Data do documento: s.d.
Local: Campo Grande, Rio de Janeiro
Sebastião Francisco Figueira, casado, idade de 43 anos, morador no Campo Grande [1], que vive da lavoura; disse ouvira dizer por várias pessoas, que em casa de Manoel Luiz, se achava a dias atrás um preto forro[2] de Minas[3], que estivera curando, as filhas de Manoel Luiz e Francisco José, que se achavam com espíritos malignos, que cujos [espíritos] falavam várias vezes, assim como na mesma ocasião se ajuntaram várias pessoas enfeitiçadas, para o dito curador[4] a curar, ele conta que nenhum dos doentes ficaram bons, só sim na mesma forma, assim como o feitor[5] do capitão Bento Luiz que morreu na mesma ocasião.
Sebastião Francisco Figueira
[1] CAMPO GRANDE: A região conhecida como o Campo Grande, devido à sua vasta extensão geográfica, fazia parte do “sertão carioca”, expressão cunhada pelo naturalista Magalhães Côrrea para se referir a área rural da cidade do Rio de Janeiro, distante do centro urbano e com fraca densidade demográfica. Ela se estendia entre a serra do Gericinó e as serras da Tijuca, Pedra Branca, Bangu, Cabuçu e a localidade de Campo Grande (FRÓES e GELABERT. Rumo ao Campo Grande por trilhas e caminhos. Rio de Janeiro: Gráfica Brunner, 2004). As terras da região foram distribuídas através do sistema de sesmarias, com o objetivo de estimular a ocupação e o desenvolvimento agrícola da área. As primeiras fazendas e engenhos foram formados no século XVII, destinadas sobretudo à lavoura da cana-de-açúcar e a criação de gado, mas também à gênero de subsistência para abastecimento do centro da cidade. Em 1673, foi criada a paróquia de Nossa Senhora do Desterro, que seria a matriz da freguesia de Campo Grande, instituída a partir do desmembramento com a freguesia de Irajá.
[2] FORRO: Eram considerados forros os ex-escravizados que haviam obtido a alforria, por meio de uma carta, por testamento ou no momento do batismo. Até a segunda metade do século XVII encontra-se a expressão “índio forro” com o sentido de libertar gentio como eram chamados os indígenas da suposta barbárie em que viviam, pela ótica cristã. Para Eduardo França Paiva, as alforrias são um componente da escravidão e já no mundo antigo eram praticadas com frequência. Alforria, como lembra esse autor, é um termo de origem árabe e equivale a libertar. Mas no mundo romano as libertações de escravos já ocorriam com frequência, chamadas de manumissões. Entre os ibéricos, com a escravidão introduzida no Novo Mundo, os forros ou resgatados foram sua imediata contrapartida. A ideia de resgate era bem conhecida dos portugueses que haviam tido que resgatar cristãos cativos no Norte da África. A partir do século XVII o aumento de africanos escravizados na América portuguesa provocou também a quantidade e variedade de tipos de alforrias, compradas, obtidas por negociação entre senhor e escravo, prometidas. A área das minas foi um catalizador para entrada de um imenso contingente de escravos no Brasil e fez surgir outra configuração social, com vilas e arraiais nos quais a maioria era de escravos, forros e nascidos livres. Ao final do setecentos torna-se comum que libertos passassem a possuir escravos, que da mesma forma lograram ser alforriados dentro da mesma lógica dos seus proprietários forros. Mas, como conclui França, a ascensão desses forros não apagava o seu passado naquela sociedade escravista. A combinação do nome com a categoria imposta e a condição jurídica acompanhava os “pretos forros” ou “mulato forro” até que acabasse por se dissipar. (Cf. FRANÇA, E. O. Alforria. In: GOMES, F., SCHWARCZ, Lilia M. Dicionário da escravidão e liberdade, 2018).
[3] PRETO MINAS: O termo “Mina” foi usado, entre os séculos XVII e XIX, como designação étnica de africanos escravizados e traficados para a América. Foram construídas identidades de acordo com a cor e procedência da população escravizada: minas, angolas, cabindas, benguelas, monjolos – identidades cunhadas por traficantes de escravos, europeus ou africanos, ou pela burocracia colonial, que tinham como função classificar e organizar a grande massa de africanos estabelecida no Novo Mundo. A expressão “preto Mina” carregava informações indispensáveis que acompanhavam o escravo por toda vida, mesmo que esse trocasse de proprietário ou conseguisse sua alforria; a cor a e a origem eram atributos indeléveis. A identidade Mina estava diretamente relacionada aos africanos trazidos da Costa do Ouro na África Ocidental, ou Costa da Mina como era conhecida pelos portugueses, englobaria ainda a Costa do Marfim e, no século XVII, a Costa dos Escravos, portanto era usada para designar uma grande variedade de grupos étnicos e linguísticos. Segundo Juliana Barreto Farias e Mariza de Carvalho Soares, “eram no seu conjunto povos diversos que foram escravizados em diferentes momentos de suas histórias em função da demanda do comércio atlântico de escravos. Pode-se hoje afirmar que a “nação mina” engloba indivíduos que pertenceram a diferentes povos e que, dentre eles, os mais numerosos foram os conhecidos como de línguas do grupo gbe e do iorubá” (De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX. Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017). Usada pelos colonizadores como forma de identificação dos escravizados, a expressão também serviu como organização de grupos identitários com um passado étnico em comum, criando formas de sociabilidades do outro lado do Atlântico. A afirmação dessas identidades seria fundamental para a inserção do africano escravizado na sociedade urbana e suas redes de trabalho, religiosas ou de parentescos.
[4] CURADOR: As artes de curar no Brasil colonial estão relacionadas a uma complexa interação entre os diferentes saberes preocupados em preservar a saúde, diagnosticar e curar o corpo doente. Múltiplos foram as práticas terapêuticas e os agentes envolvidos na arte de curar e estiveram, quase sempre, a cargo de parteiras, curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, padres, barbeiros e sangradores, licenciados ou não. A medicina na América portuguesa foi resultado do arranjo entre as tradições culturais populares e os conhecimentos teóricos dos poucos profissionais instalados na colônia. A Coroa portuguesa procurava, através de regimentos e órgãos de fiscalização, coibir o exercício ilegal das artes de curar, ou seja, aquela praticada sem a autorização e sem a licença exigida. Delegados e juízes comissionados do cirurgião-mor e físico-mor do Reino foram os responsáveis pela fiscalização das artes de curar nos domínios ultramarinos até a criação da Fisicatura no Rio de Janeiro em 1808, órgão responsável, entre outras coisas, por conceder autorizações e licenças para a atuação dos terapeutas. No entanto, a dispersão das povoações pelo vasto território brasileiro dificultava a aplicação e fiscalização das leis editadas em Portugal sobre as práticas médicas; além da quantidade de profissionais oficializados não ser suficiente para atender as demandas de toda população (COELHO, Ricardo Ribeiro. O universo social das artes de curar no Brasil. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011). Assim, a medicina popular, aquela praticada sem licença e estruturada no conjunto de práticas, hábitos e conhecimentos nascidos a partir do convívio assíduo entre as três culturas formadoras da sociedade brasileira – indígenas, africanos e europeus – representaria grande parte dos esforços empreendidos na cura dos corpos doentes. Ervas medicinais, amuletos e rituais religiosos faziam parte do repertório do curador, pois a crença comum era de explicações sobrenaturais para os males do corpo e da alma, provocados por agentes externos, incorporado ou provocado através de magia ou feitiçaria. Segundo Coelho, a fiscalização costumava agir sobre os curadores populares somente quando o interesse de algum licenciado estivesse ameaçado. A atuação de curadores informais, geralmente pessoas pobres de origem escrava ou indígena, foi amplamente aceita em todas as classes sociais. A participação de escravos e negros libertos entre os praticantes dos ofícios mecânicos das artes de curar, sobretudo barbeiros, sangradores e curadores, era comum e uma forma de obter vantagens e oportunidades. Alguns negros curadores ganharam popularidade em função dos serviços prestados, garantindo maior status social e tecendo, através da arte de curar, uma forma de resistência contra a opressão do sistema escravista.
[5] FEITOR: conhecidos pela incumbência de infligir punições aos escravizados, sua função como trabalhadores rurais assalariados era administrar o trabalho escravo nos engenhos e fazendas. Tinham permissão para aplicar castigos de acordo com seu discernimento e há frequentes registros da extrema brutalidade com que se conduziam, capazes de deixar um cativo inválido. Muitos avisos foram emitidos pelos governadores e intendentes no sentido de tentar coibir tais abusos, em geral sem sucesso. Para controle dos escravos, o feitor andava sempre com o chicote de couro cru, que usava muitas vezes na aplicação da pena. Durante muito tempo, esse papel era desempenhado por portugueses, mas com o tempo os brancos nascidos no Brasil e mesmo os mestiços se tornaram feitores. A imposição do castigo transferia para o feitor, um assalariado sem posses, embora bem pago, o poder soberano de vida e morte, pelos menos nas aparências, desonerando, parcialmente, o grande senhor do ódio cotidiano dos seus escravos, permitindo que este ocupasse, quando conveniente, uma posição paternalista em relação a sua propriedade humana.
(http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao36/materia03/texto03.pdf)
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