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Preto forro Vicente José Bento

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Terça, 08 de Fevereiro de 2022, 20h36 | Última atualização em Quinta, 10 de Fevereiro de 2022, 17h49

Registro de ofício expedido ao juiz do crime do Bairro de São José pelo intendente-geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, Paulo Fernandes Viana. Comunica a prisão do preto forro Vicente José Bento, conduzido à cadeia de Aljube para averiguações, acusado de ser “feiticeiro”.

Conjunto documental: Registro de Ordem e Ofícios Expedidos da Polícia aos Ministros Criminais dos Bairros e Comarcas da Corte e Ministros Eclesiásticos do Rio de Janeiro
Notação: códice 329, vol. 2
Datas- limite: 1812-1815
Código do fundo: ØE
Título do fundo: Polícia da Corte
Argumento de pesquisa: Feitiçaria
Data do documento: 30 de agosto de 1814
Local: Rio de Janeiro

Veja o documento na íntegra

Registro do ofício expedido ao Juiz do Crime do bairro de São José[1] 

Para a cadeia do Aljube[2], mandei passar Vicente José Bento, preto Minas[3] forro[4], que tendo sido preso para certas averiguações que convinham à Polícia[5] fazer, consta agora para a voz pública que ele inculca-se feiticeiro[6], usando de várias superstições e granjeando o nome de curador de diversas enfermidades, e com estas imposturas faz concorrer à sua casa muitas pessoas e tem extorquido diversas quantias, a título de remunerações, para curas que inculca fazer, e a outros que os há de felicitar em diversas preleções que se lhes comunica; por tudo isto deve V.M. já proceder a um sumário de polícia com citação deles para se ver autuar, e jurar-lhes ouvidos aos moradores da rua de Santo Antônio, onde ele reside, e as mais pessoas que convivem de modo que se possa verificar com segurança tudo quanto se diz, que cumpre averiguar, e dará parte. Deus guarde V.M.

Rio, 30 de agosto de 1811

Paulo Fernandes Vianna[7]

 

[1] SÃO JOSÉ, BAIRRO: De acordo com as “Memorias Publicas e Economicas da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos por observação curiosa dos annos de 1779 até o de 1789”, a cidade apresentava-se dividida em quatro freguesias urbanas ao final do século XVIII: Sé, Candelária, Santa Rita e São José. A freguesia de São José surgiu em 1749, a partir do desmembramento da antiga freguesia da Candelária em outras duas novas: Santa Rita e São José. Abrangia o núcleo mais antigo da cidade, incluindo o morro do Castelo, espraiando-se pelos vales dos rios Carioca e do Catete, até as margens da lagoa Rodrigo de Freitas e a região praieira.

[2] CADEIA DO ALJUBE: Localizada no Rio de Janeiro, na antiga rua do Aljube (hoje rua Acre), entre as ruas do Ourives e Camerino, no bairro da Saúde. A palavra “aljube” deriva do árabe, e significa cárcere, masmorra, cisterna, e as descrições apontam para uma prisão úmida, suja e escura. Fora instituída pelo bispo d. Antônio de Guadalupe em 1735, para os eclesiásticos que tivessem cometido delitos, separando-os dos criminosos comuns. Com o tempo e em especial a partir de 1808, em consequência da falta de edifícios após a chegada da Corte, o aljube se fundiu com a cadeia comum e serviu de prisão para contrabandistas, estelionatários, presos comuns em geral, denominando-se a partir de 1823 “cadeia da Relação”. Em 1856, foi desativada face às péssimas condições de higiene e salubridade, tornando-se uma casa de cômodos. Foi definitivamente demolida em 1906.

[3] PRETO MINAS: O termo “Mina” foi usado, entre os séculos XVII e XIX, como designação étnica de africanos escravizados e traficados para a América. Foram construídas identidades de acordo com a cor e procedência da população escravizada: minas, angolas, cabindas, benguelas, monjolos – identidades cunhadas por traficantes de escravos, europeus ou africanos, ou pela burocracia colonial, que tinham como função classificar e organizar a grande massa de africanos estabelecida no Novo Mundo. A expressão “preto Mina” carregava informações indispensáveis que acompanhavam o escravo por toda vida, mesmo que esse trocasse de proprietário ou conseguisse sua alforria; a cor a e a origem eram atributos indeléveis. A identidade Mina estava diretamente relacionada aos africanos trazidos da Costa do Ouro na África Ocidental, ou Costa da Mina como era conhecida pelos portugueses, englobaria ainda a Costa do Marfim e, no século XVII, a Costa dos Escravos, portanto era usada para designar uma grande variedade de grupos étnicos e linguísticos. Segundo Juliana Barreto Farias e Mariza de Carvalho Soares, “eram no seu conjunto povos diversos que foram escravizados em diferentes momentos de suas histórias em função da demanda do comércio atlântico de escravos. Pode-se hoje afirmar que a “nação mina” engloba indivíduos que pertenceram a diferentes povos e que, dentre eles, os mais numerosos foram os conhecidos como de línguas do grupo gbe e do iorubá” (De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX. Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017). Usada pelos colonizadores como forma de identificação dos escravizados, a expressão também serviu como organização de grupos identitários com um passado étnico em comum, criando formas de sociabilidades do outro lado do Atlântico. A afirmação dessas identidades seria fundamental para a inserção do africano escravizado na sociedade urbana e suas redes de trabalho, religiosas ou de parentescos.

[4] FORRO: Eram considerados forros os ex-escravizados que haviam obtido a alforria, por meio de uma carta, por testamento ou no momento do batismo. Até a segunda metade do século XVII encontra-se a expressão “índio forro” com o sentido de libertar gentio como eram chamados os indígenas da suposta barbárie em que viviam, pela ótica cristã. Para Eduardo França Paiva, as alforrias são um componente da escravidão e já no mundo antigo eram praticadas com frequência. Alforria, como lembra esse autor, é um termo de origem árabe e equivale a libertar. Mas no mundo romano as libertações de escravos já ocorriam com frequência, chamadas de manumissões. Entre os ibéricos, com a escravidão introduzida no Novo Mundo, os forros ou resgatados foram sua imediata contrapartida. A ideia de resgate era bem conhecida dos portugueses que haviam tido que resgatar cristãos cativos no Norte da África. A partir do século XVII o aumento de africanos escravizados na América portuguesa provocou também a quantidade e variedade de tipos de alforrias, compradas, obtidas por negociação entre senhor e escravo, prometidas. A área das minas foi um catalizador para entrada de um imenso contingente de escravos no Brasil e fez surgir outra configuração social, com vilas e arraiais nos quais a maioria era de escravos, forros e nascidos livres. Ao final do setecentos torna-se comum que libertos passassem a possuir escravos, que da mesma forma lograram ser alforriados dentro da mesma lógica dos seus proprietários forros. Mas, como conclui França, a ascensão desses forros não apagava o seu passado naquela sociedade escravista. A combinação do nome com a categoria imposta e a condição jurídica acompanhava os “pretos forros” ou “mulato forro” até que acabasse por se dissipar. (Cf. FRANÇA, E. O. Alforria. In: GOMES, F., SCHWARCZ, Lilia M. Dicionário da escravidão e liberdade, 2018).

[5] POLÍCIA DA CORTE: A Intendência de Polícia foi uma instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral da Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro, sendo responsável pela manutenção da ordem, o cumprimento das leis, pela punição das infrações, além de administrar as obras públicas e organizar um aparato policial eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas perniciosas e subversivas. Na prática, entretanto, a Polícia da Corte esteve também ligada a outras funções cotidianas da municipalidade, atuando na limpeza, pavimentação e conservação de ruas e caminhos; na dragagem de pântanos; na poda de árvores; aterros; na construção de chafarizes, entre outros. Teve uma atuação muito ampla, abrangendo desde a segurança pública até as questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais, relacionados a conflitos conjugais e familiares como mediadora de brigas de família e de vizinhos, entre outras atribuições. O aumento drástico da população na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, da população africana circulando nas ruas da cidade a partir de 1808, esteve no centro das preocupações das autoridades portuguesas, e nela reside uma das principais motivações para a estruturação da Intendência de Polícia que, ao contrário do que vinha ocorrendo no Velho Mundo, deu continuidade aos castigos corporais junto a uma parcela específica da população. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil na primeira metade do século XIX, e apresentava um caráter também político, uma vez que vigiava de perto as classes populares e seu comportamento, com ou sem conotação ostensiva de criminalidade. Um dos traços mais marcantes da manutenção desta ordem política, sobreposta ao combate ao crime, se expressa em sua atuação junto à população negra – especialmente a cativa – responsabilizando-se inclusive pela aplicação de castigos físicos por solicitação dos senhores, mediante pagamento. O primeiro Intendente de Polícia da Corte foi Paulo Fernandes Vianna, que ocupou o cargo de 1808 até 1821, período em que organizou a instituição. Subordinava-se diretamente a d. João VI, e a ele prestava contas através dos ministros. Durante o período em que esteve no cargo, percebe-se que muitas funções exercidas pela Intendência ultrapassavam sua alçada, em especial àquelas relacionadas à ordem na cidade e às despesas públicas, por vezes ocasionando conflitos com o Senado da Câmara. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros.

[6] FEITIÇARIA: Feiticeiros eram indivíduos pertencentes às camadas mais baixas da sociedade colonial, sobretudo africanos, indígenas e seus descendentes, homens e mulheres, que se utilizavam de práticas e artifícios mágico-misteriosos para curar as “chagas do corpo e da alma”. Inseridas no cotidiano popular da colônia, suas práticas de cura envolviam o uso de ervas e plantas medicinais associadas à recursos sobrenaturais, buscando satisfazer necessidades iminentes do dia a dia. Adivinhações, benzeduras, magia para resolver problemas amorosos, de saúde e financeiros eram algumas das habilidades de um feiticeiro, que buscavam, ora curar o corpo e desfazer feitiços, ora eram os próprios agentes maléficos, lançando bruxedos em eventuais inimigos. Tais costumes populares faziam parte de uma cosmovisão própria do mundo colonial que se construiu de forma sincrética, onde se misturavam elementos católicos, negros, indígenas e do judaísmo; recorria-se simultaneamente aos orixás, aos santos católicos, às divindades ameríndias e ao diabo (Laura de Melo e Souza. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009). Esse corpo de crenças sincréticas que estruturava a religiosidade popular tornou possível uma maior tolerância das práticas mágicas na América portuguesa. Apesar de arrolar-se como crime práticas e saberes mágicos que fossem contrários aos preceitos e dogmas da Igreja Católica e que se colocasse como uma ameaça ao Estado, magos e feiticeiros utilizaram-se desse papel da melhor forma possível, usando seus conhecimentos herbolários e o recurso ao sobrenatural para buscar afirmação social e ganhos materiais. Detentores de saberes sobrenaturais e de cura, muitas vezes acumulavam funções de sábio, padre e médico, num território ainda escasso de profissionais habilitados. Ganhando fama através de suas práticas, eram requisitados, inclusive, por parte da elite colonial, galgando maior respeitabilidade social, mesmo que para isso enfrentasse o risco de serem denunciados (André Nogueira. Relações sociais e práticas mágicas na Capitania do Ouro. Estudos afro-asiáticos, jan-dez de 2005).

[7] VIANNA, PAULO FERNANDES: (1758-1824): Desembargador e ouvidor da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente geral da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeira, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam.

 

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